segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA, LEITOR DE GUIMARÃES ROSA.

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA, LEITOR DE GUIMARÃES ROSA.
LUIZ ROBERTO ZANOTTI
Doutorando no PPG em Letras: Estudos Literários (UFPR)


Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar como a idéia da coexistência de elementos mutuamente excludentes, da forma como nos é apresentada através das palestras de Wolfgang Iser por ocasião do VII Colóquio UERJ , se encontra presente, tanto em Grande sertão: veredas (1956) de João Guimarães Rosa, como também é utilizada por Glauber Rocha em seu longa metragem Deus e o diabo na terra do sol (1964) .
Para isto, inicialmente traçamos uma ligeira revisão da teoria iseriana desde o aparecimento da teoria dos efeitos (reader-response criticism), que enfoca a assimetria entre texto e leitor, até o conceito de antropologia literária, que trata da interação entre o fictício e o imaginário.
É importante notar, que mais do que trabalhar na interpretação destas duas obras de arte, procuramos aplicar a teoria de Iser como uma explicação para o fenômeno da coexistência de elementos mutuamente exclusivos, pois como o próprio Iser afirma: “É importante notar que tanto as teorias do efeito estético e a antropologia literária são basicamente constructos, ora, constructos não são necessariamente descrições de ocorrências empíricas”. (ISER in ROCHA, 1999, p. 47)
Iser mostra, no percurso da sua obra, toda a sua orientação teórica heurística, mantendo um certo afastamento de instrumentos interpretativos, através dos quais diferentes estruturas de constituição de sentido são examinadas e, logo, decodificadas, ou seja, com o analista se obrigando a fornecer uma interpretação para um determinado texto.Dessa forma, a teoria de Iser está muito mais voltada para pressupostos heurísticos capazes de descrever qualquer gênero de produção de sentido, ou seja, para investigar as condições mais gerais ( e portanto mais abstratas) que possibilitam o próprio ato interpretativo. (SCHOLLHAMMER in ROCHA, 1999, p. 119)
Seguindo um raciocínio semelhante, João César Rocha lembra que Iser tem elaborado uma reflexão que, a exemplo do objeto investigado, se modifica, incorpora novos conceitos, retoma preocupações, aprofundando seu alcance e redefinindo suas prioridades numa rara lição de precisão teórica que continuamente se adapta a “indecibilidade” do objeto (ROCHA, 1999, p.14).
Enfim, a teoria de Iser se limita através de um esforço heurístico a constituir esquemas com a finalidade de mapear a realidade e, portanto, a abordagem iseriana não pretende interpretar realizações determinadas, mas, pelo contrário, almeja fornecer um sistema de referências no âmbito no qual aquelas realizações adquirem especificidade, ou seja, não se trata de elaborar métodos particulares de interpretação, mas de mapear as disposições mais básicas no interior das quais o ato interpretativo se torna concebível, e até mesmo necessário.

1. A teoria dos efeitos (A interação entre o leitor e o texto)

Pode-se dizer que tanto a teoria dos efeitos de Iser, como a estética da recepção, que tem como o seu principal artífice Hans Robert Jauss, são em grande parte, inspiradas em Hans-Georg Gadamer; mas enquanto a estética da recepção se articula a partir da reconstrução histórica de juízos de leitores particulares, objetivando verificar o modo como se processa a interação das expectativas tradicionais do leitor frente a um texto específico, ou seja, através da análise da fusão dos horizontes de expectativa com o ato de leitura; a estética do efeito é trabalhada a partir do texto, uma vez que ela pretende elaborar uma descrição da interação fenomenológica que ocorre entre texto e leitor.
Iser elabora o constructo da existência de uma assimetria inicial entre texto e leitor, sendo que a estética do efeito almeja compreender o ato de leitura como uma forma particular de negociação daquela assimetria. Para tanto, investiga a estrutura própria dos textos literários, valorizando a interação específica que tal estrutura provoca.
Em suma, enquanto a estética da recepção trabalha com atos de leitura historicamente verificáveis, a teoria do efeito estético busca o estabelecimento de um modelo genérico que dê conta do próprio ato de leitura de textos literários, independentemente de seus contextos particulares de atualização. A teoria de Iser analisa o efeito estético como relação dialética entre texto e leitor, uma interação que ocorre entre ambos, ou seja, ainda que se trate de um fenômeno desencadeado pelo texto, a imaginação do leitor é acionada, para dar vida ao que o texto apresenta e reagir aos estímulos recebidos.
Do ponto de vista epistemológico, essa metáfora da interação designa uma instância textual que guia a recepção do texto e um leitor que "processa" ativamente o texto. Para Iser, quando produtiva, essa interação entre duas instâncias (agencies) se apóia na negatividade e na indeterminação enquanto modos de contato. Da mesma maneira que um texto bem-sucedido ultrapassa as fronteiras das determinações históricas e culturais, uma leitura produtiva processa e, com isso, muda ativamente o que é "manifesto" num texto. Gabriele Schwab lembra que para Iser: a determinação nos decepciona num texto tanto quanto numa leitura. (SCHWAB in ROCHA, 1999, p.37)
Ao se reportar à decepção com os textos “determinados” que oferecem uma simples busca da mensagem e do sentido, e propor o constructo da interação texto-leitor, Iser deixa claro a importância que credita à indeterminação de um texto, o que como veremos adiante possibilita a idéia da coexistência de elementos mutuamente excludentes. Iser, no primeiro capítulo “Arte parcial- A interpretação universalista” do livro O ato de leitura (1996) apresenta a inadequação do gesto da interpretação teórica da literatura que busca as significações aparentemente ocultas nos textos literários, tomando como exemplo o conto The figure in the carpet (1896), de Henry James, onde o autor problematiza a procura por significações ocultas nos textos − o que provavelmente desempenhou um papel importante na crítica literária de sua época −, mostrando a sua inadequação (ISER, 1996b, p. 23).
Assim, uma vez perdido o solo firme do “essencialismo” e com o texto deixando de ser o foco principal da análise, esta passa para o leitor em sua interação com o texto; e ciente que nenhuma história pode ser contada na íntegra, Iser vai trabalhar com o constructo de um texto que é pontuado por hiatos, lacunas e negatividades que têm de ser negociados no ato da leitura. A lacuna (vazio) no texto ficcional induz e guia a atividade do leitor com a suspensão da conectibilidade entre segmentos de perspectivas, possibilitando a participação do leitor no texto; enquanto a negatividade significa a não realização de um procedimento (que é esperado pelo leitor), isto é, a sua realização negativa com a intenção de empurrar o leitor para fora do texto.
Toda esta estrutura, segundo Schwab traz um aspecto fundamental na obra iseriana que mostra a sua tentativa de evitar as armadilhas da manifestação concreta e, em última instância, solapar qualquer forma de determinação, e cita: "o que a linguagem diz é transcendido por aquilo que ela revela, e aquilo que é revelado representa o seu verdadeiro sentido" (SCHWAB in ROCHA, 1999, p. 35).

2. A interação entre o fictício e o imaginário

A interação do fictício com o imaginário, assim como a interação leitor-texto, também abre vários espaços para a indeterminação, e a origem deste novo constructo “interação fictício-imaginário” se encontra no fato da teoria do efeito estético não conseguir explicar a aparente necessidade dos seres humanos por um meio de "fingimento" (ficção), uma característica que aparece nas investigações de Iser sobre o que de fato acontece quando lemos.
A partir desse pressuposto, Iser amplia o horizonte da teoria do efeito estético, a fim de transformar o estudo da estrutura dos textos literários e, sobretudo, da interação entre texto e leitor, numa investigação dos modos de operação que caracterizam o desenvolvimento de disposições propriamente humanas, apresentada em O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária (1996).
Neste ensaio, Iser apresenta a idéia de que a narração se encontra na fronteira que delimita o ficcional, o imaginário e a realidade, tornando possível a caracterização do referencial reportado, mas sem a possibilidade de ser por ele determinado, afirmando assim a proximidade entre os textos ficcionais e não-ficcionais, uma vez que eles são apenas materiais para a intenção do autor quando seleciona estes elementos que vão aparecer na narração, pois, não há representação puramente concebida, re-presentada.
O processo de elaboração do texto ficcional é bastante complexo, podendo ser caracterizado como uma travessia de fronteiras entre dois mundos, que sempre inclui, o mundo que foi ultrapassado e o mundo alvo a que se visa, que tanto pode se relacionar a uma mentira que busca exceder a verdade, como uma ultrapassagem do mundo real. Para se perceber as implicações destas duplicações é importante notar que os atos de fingir, componente básico dos textos literários, oferecem diferentes áreas para o jogo.
O fictício para realizar o que tem em mira, depende do imaginário − que não é auto-ativável −, pois o que tem em mira só aponta para alguma coisa que não se configura em decorrência de se estar apontando para ela: é preciso imaginá-la. O horizonte de possibilidades prefigurado pela transgressão de fronteiras inevitavelmente modifica as realidades que foram ultrapassadas, sendo que o imaginário só pode ser apreendido por meio de seus efeitos que uma vez ativados, faz com que o que era não possa permanecer o mesmo.
Sendo assim, a ativação desse potencial precisa ser moldada, e disso se encarregam os “atos de fingir”, ao forçarem a fantasia a assumir uma forma, para que as possibilidades abertas por eles possam ser concebidas, já que o próprio ato de fingir não pode conceber aquilo para o que ele apontou. A imposição de forma tem um duplo efeito: torna concretas as várias transgressões de fronteira, ao mesmo tempo, que converte o fictício num meio para que o imaginário se manifeste. (ISER in ROCHA, 1999, p. 71)
Vista sob esta perspectiva a literatura não reproduz ou espelha nada fora dela, mas antes apresenta algumas ilimitadas possibilidades que existem além das manifestações históricas concretas, sejam relativas aos sujeitos individuais, sejam referentes às culturas, e daí abre-se a possibilidade do aparecimento da coexistência de elementos opostos, que a princípio, dentro de uma filosofia cartesiana e dicotômica deveriam ser mutuamente excludentes.
Dessa forma, numa primeira abordagem pode-se dizer que enquanto o fictício se manifesta de uma maneira intencional, o imaginário trabalha de uma forma espontânea, com ambos fazendo parte de uma interação que se expande continuamente através de um jogo que tem o papel de uma estrutura reguladora da interação. Este jogo possui regras e os jogadores têm de obedecê-las na tentativa de saber que questão é essa. “Não existem respostas definitivas. Ao invés de um discurso vitimador, uma consciência crescente que num mundo aberto as soluções são, na melhor das hipóteses, provisórias, inexistindo respostas conclusivas” (ISER in ROCHA, 1999, p. 217).
Iser desenvolve a interação do fictício com o imaginário, apesar da dificuldade de qualquer afirmação de suas naturezas ontológicas, pois só podemos apreendê-los mediante uma descrição operacional das suas manifestações, através do jogo (play), uma estrutura capaz de propiciar diferentes tipos de interação, quer entre o texto e o leitor, quer entre o fictício e o imaginário. Isso significa que a “ficcionalização” sempre está sujeita a mudanças, em decorrência de sua inabilidade para controlar o alvo a que visava. O jogo emerge da coexistência do fictício e do imaginário que se fundem, visto que cada um é em si mesmo incapaz de cumprir qualquer função específica, sendo necessária a sua interação para desencadear aquele movimento de jogo.
Assim, num universo ficcional indeterminado, dentro de uma ilimitada perspectiva de interpretação apoiada pela dinâmica semântica fornecida pelo jogo interpretativo, e pelas mudanças constantes de realizações imaginárias, aparece a condição de existência para a “coexistência de elementos mutuamente excludentes”, um conceito, que segundo Jean Paul Riquelme não pode ser previsto por Aristóteles, pois ao contrário da mimesis; Iser mostra, desenleaando a trama aristotélica, que a leitura da literatura é múltipla, podendo chegar-se ao final dela, sem nunca esteja terminada, à semelhança das histórias que contava Sherazade (RIQUELME in ROCHA, 1999, p. 215).
Dentro, deste panorama, que Riquelme chama a “Antropologia literária” de um “espaço não-euclidiano” , pois Iser apresenta a noção da possibilidade da coexistência de termos excludentes como uma importante propriedade da obra literária, e porque não dizer da obra de arte em geral: A ficcionalidade como coexistência ou simultaneidade de elementos mutuamente excludentes, tradução de alguma coisa para outro registro, escapa a fundamentação ontológica (coisificação) e estimula a necessidade de compreendê-lo (ato de tradução correspondente a ausência de qualquer totalidade). (ISER in ROCHA, 1999, p. 221), ou como Oscar Wilde indicou: “uma verdade na arte é uma afirmação cujo oposto também é verdadeiro” (WILDE citado em ROCHA, 1999, p. 216).
Assim sendo, Iser se libertando das muletas literárias, vai trabalhar nas suas obsessões de dissolver as fronteiras, limites, e teorias levadas ao limite que estão relacionadas a resistência a movimentos essencialistas, totalizantes e ontológicos; vai trabalhar a literatura como uma obra em movimento; e assumir a importância da indeterminação e da coexistência de termos mutuamente excludentes, [...]. (SCHWAB in ROCHA, 1999, p. 227)

3. A coexistência de elementos mutuamente excludentes em Grande sertão

A seguir apresentamos alguns poucos exemplos da coexistência de elementos mutuamente excludentes dentro de uma gama infinita, mostrando que a lógica dicotômica não deve ser vista como a única alternativa para apreensão do real. Esta coexistência que aproxima e afasta elementos contraditórios e aparentemente incompatíveis já pode ser percebida no fragmento: “Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é… Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses.” (GUIMARÃES ROSA , 1994, p. 201).
Em Grande Sertão, o leitor é convidado a rever alguns aspectos e reelaborar idéias, tais como o rompimento com visões dicotômicas como bom x ruim, feio x belo, uma vez que apresenta os tais atributos numa mesma pessoa, ou seja, o sertão de Guimarães tanto pode ser local físico em Minas Gerais como a imagem de um ser (tão) existencial.
Marta Costa (1997) apresenta esta coexistência através do elemento água, que ao mesmo tempo é passivo e feminino; a água também está ligada à formação da vida, devido a seu incessante movimento de fluir, mas aqui também aparece a sua dupla função, pois durante a imersão se liga ao aniquilamento, na perda de forma e conseqüentemente a morte.

É o rio Urucuia, espaço aquático inicial, medial e final da trajetória de Riobaldo. À cor de suas águas, a seu leito navegável, à região que banha, soma-se a presença de Otacília, imagem idealizada da mulher amada, ninfa, dessas águas. Mas ele é também um rio ambíguo. Se Otacília é a paz dos "remansos” do Urucuia, Diadorim é as suas sombras. Neste espaço, quando criança e adolescente, Riobaldo adquiriu os elementos; que o qualificariam para a vida adulta: a cultura, a destreza nas armas, o anseio de uma vida calma. Às suas margens surgem valores opostos: o fazendeiro/o jagunço; o homem com "status" social/ o marginal; o bem estar/a aventura, o ficar/ o ir e vir. (COSTA, 1997, p. 240)

Loyolla (2009) trabalha esta coexistência através do relacionamento entre Riobaldo e Diadorim trazendo o aspecto da dualidade ativo-passivo, masculino-feminino que permite a recorrência aos mitos primordiais, cujos heróis como Vaishvanara, Shiva, P’an-ku e Lao-kiun, tinham o olho direito ligado ao Sol e o esquerdo a Lua, sendo que a primeira correspondência aponta para o futuro, para o princípio masculino, para a autoridade e a segunda para o passado, regendo atividades associadas ao princípio feminino, à fecundação.

Assim sendo Diadorim mostra-se benevolente e terrível ao mesmo tempo. Ao lado de sua forma ameaçadora, em sua vontade inflexível de guerrear, apresenta-se uma forma graciosa. Ao mesmo tempo em que não mantém uma postura de piedade diante do inimigo — conduta supostamente feminina — parecendo inumana, sustenta com Riobaldo um relacionamento terno e de grande intimidade com a natureza, constituindo-se uma tensão entre a dimensão mortífera e a vital. (LOYOLLA, 2009)

Assim, Diadorim, as vezes invoca a dor e o ódio e as vezes o júbilo e o amor, mas essa oscilação de papéis não se restringe à personagem Diadorim; pois a própria imagem do jagunço, assim como a do cangaceiro, é ambígua em sua função. Como exemplo, podemos citar o cangaceiro Lampião, uma figura histórica que oscila entre um personagem reconhecido como herói ou retratado como vilão.
Renomados historiadores e antropólogos, tais como, Luitgarde Barros (2000), Frederico Mello (2005) e Maria Christina Machado (1978), entre outros, possuem diferentes visões sobre este assunto, sendo que os primeiros ressaltam o seu caráter ligado ao banditismo , enquanto Machado apresenta, dentro de uma perspectiva marxista, Lampião não como um fato isolado, mas sim como o resultado de uma época em que se processava a luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra. (MACHADO, 1978, p. 6).
Antonio Candido também ressalta esta coexistência ao falar desta ambigüidade da mulher-homem que é Diadorim; ambigüidade metafísica, que balança Riobaldo entre deus e o diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem, ambigüidade inicial e final do estilo, popular e erudito, arcaico e moderno, claro e escuro, artificial e espontâneo. (CANDIDO citado em MARÇOLLA, 2009).
Leonardo Almeida (2009) vai se apoiar na tabula smaradigma , para notar que no fragmento “Ouro e prata que Diadorim aparecia ali” (R., p.405) configura a coexistência do masculino com o feminino que se faz da seguinte forma: “masculino: o sol, ouro, o fogo, o ar, o rei, o espírito de enxofre; feminino: a luz, a prata, a terra, a água, a rainha, o espírito de mercúrio” (BRANDÃO citado em ALMEIDA, 2009). Ouro associado ao princípio masculino e ao espírito de enxofre; a prata ao princípio feminino e ao espírito de mercúrio.
Enfim, na tentativa de visualizar o processo pelo qual o real, o fictício joga com o imaginário nessas diversas leituras, é interessante notar que Loyolla (2009) apresenta a pedra ametista, como um elemento que ajuda a elucidar o comportamento ambíguo de Diadorim, que às vezes é dócil e às vezes é seco, pronto para matar e vingar. Esta pedra corresponde na astrologia ao planeta Vênus que faz duas aparições nas duas extremidades do dia, sendo por isso conhecido como estrela da manhã e estrela da tarde, o que faz dele um símbolo de morte e renascimento. “Como deusa da tarde, sob a influência da lua, favorece o amor e a volúpia — uma divindade do prazer; como deusa da manhã, em virtude de seu parentesco com o sol, preside os atos de guerra e massacre. Assim em Diadorim, ora suas qualidades guerreiras se impõem, ora ela se permite ao prazer” (LOYOLLA, 2009).
Essa dualidade estrela da manhã e estrela da tarde parece ser uma das grandes coincidências entre esta interpretação proposta por Loyola e o comentário efetuado por Schollhamer (ROCHA, 1999, p. 118), para quem, Gotlib Frege (1978) tem uma grande influência na teoria de Iser:

[...] os significados são distinguíveis da referência, pois diferentes signos podem se referir aos mesmos objetos, como é o caso das duas frases para se referir ao planeta “Venus”. Para se explicar a diferença cognitiva entre as duas frases, é necessário considerar o conteúdo dos signos e não eles próprios através de uma explicação não metalinguística das sentenças. Sentido é um conteúdo cognitivo suplementar ao objeto, assim, estrela da manhã e estrela da tarde falam do mesmo objeto e dividem o mesmo conteúdo semântico, portanto elas tem o mesmo objeto (referente), por via sentidos diferentes.(FREGE, 1978).

4. Coexistência de elementos mutuamente excludentes em Deus e o diabo.

Glauber Rocha ao filmar Deus e o Diabo vai buscar uma situação em que, segundo Avellar, a relação espectador/filme parte de um sentimento idêntico: o filme como uma expressão incompleta, melaço de cana, para ser refinada pelo espectador. Um provocador onírico, pois o filme é também um provocador crítico, e cita o próprio Glauber: “Na medida em que se dá ao espectador um tipo acabado [...], um tipo reduzido, um tipo estratificado, um tipo dentro dessa tradição, não se dá a menor possibilidade de diálogo com o espectador, porque se coloca [...] (AVELLAR, 1995, p. 17)
Da mesma forma como observou certa vez Marcel Duchamp, "o artista não é o único a realizar o ato de criação porque o espectador interpreta e decifra suas significações profundas e acrescenta assim sua própria contribuição ao processo criativo", Glauber vê a criação como uma série de esforços, de dores, de satisfações, de negações, de decisões que não podem nem devem ser plenamente conscientes, pelo menos no plano estético. A obra é a expressão em estado bruto, que deve ser refinada pelo espectador pois: "Liberta pela imaginação o que é proibido pela razão" (GLAUBER citado em AVELLAR, 1995, p. 59)
Mas esta liberdade oferecida pela imaginação não significa para Glauber, assim como já vimos em Iser, que o filme altere a realidade, pois para ele sempre existe o aproveitamento e desenvolvimento de elementos reais:
Não há uma só coisa no filme que não corresponda a um dado real e concreto, inclusive o próprio fato do cangaceiro girar. Por que escolhi o Corisco? O Corisco tinha todas aquelas características que me interessavam: era um sujeito rápido, ágil, místico, histérico e verboso. Tinha tudo isso, se chamava Corisco porque ninguém acertava nele: andava rodando mesmo. (GLAUBER citado em AVELLAR, 1995, p. 87).
Mas Corisco é a própria constatação da coexistência de elementos mutuamente excludentes pois, no filme, o ator Othon Bastos que encena a personagem Corisco, além de emprestar a sua voz a sua própria personagem, faz ainda uma outra voz, a do Santo Sebastião - algo mais grave que a de Corisco, a idéia de usar a mesma voz para deus e para o diabo, segundo Avellar (1995, p. 22) surgiu somente durante a montagem, de modo a que o espectador pudesse identificar uma certa semelhança entre as propostas e mais rapidamente concluir com o filme que a terra é do homem, nem de deus nem do diabo.
Esta coexistência, segundo Claudio da Costa, também pode ser percebida em um espelhamento de uma na outra, pois enquanto Sebastião tem parte com Deus e com o Diabo, como diz Antônio das Mortes, Corisco é o diabo que foi possuído por São Jorge. Esses espelhamentos dobram em ambigüidades a palavra do cego e de seus mitos. A palavra mítica, afirma Luiz Costa Lima, é verdade e engano, simultaneamente. Com as palavras de Marcel Detienne, Costa Lima nos diz que, "no pensamento mítico os contrários são complementares" (COSTA LIMA citado em COSTA, 2000, p.68)
Deus e o diabo vai trabalhar com outras interações, além daquelas constatadas por Iser, pois a escrita da imagem é uma forma de jogo que afirma a interação infinita entre a palavra (som) e a imagem (fotografia), a conjugação em reversibilidade entre duas dimensões do audiovisual. Tal reversibilidade infinita torna possível a coexistência dos elementos contrários, pois como vimos, Glauber cria uma imagem onde o espectador descobre que não está a ser imposta uma visão dirigida como um produto concluído do autor, buscando eliminar a idéia do espectador como um ser que contempla, de maneira semelhante com que Guimarães Rosa trabalha na indeterminação. O artista quer expulsar e revelar no homem seu conflito e inconformismo com o mundo e impulsioná-lo ao desconhecido.Neste sentido, a coexistência dos excludentes trabalha no sentido de quebrar a resistência, a automação da consciência, na desconstrução do caráter normativo das coisas, a fim de abrir espaço para o novo: “Pela arte é possível "pensar a natureza e o absurdo" (GLAUBER citado em VENTURA, p. 170).
A “desrazão” que possibilita a coexistência dos excludentes faz parte da estética de Glauber que reivindica a libertação das variações ideológicas da razão e que promova a fusão do humano ao cosmos. A revolução explicita que a pobreza é um fenômeno da razão dominadora que recusa o desconhecido, classificando-o como irracional. A revolução é a "desrazão" que liberta o homem da razão repressiva. Ela se faz na imprevisibilidade (VENTURA, 2000, p. 284).

5. Conclusão

Assim, a existência dos mutuamente excludentes que aparecem em Grande Sertão, fazendo que em Diadorim seja tanto homem, como mulher, ou que Riobaldo, seja tanto jagunço, como fazendeiro, também aparecem em Deus e o Diabo, não somente na dualidade da voz de Othon Bastos, mas também no conflito entre Antônio das Mortes e Manuel, o matador de cangaceiros e o vaqueiro são personagens igualmente condicionados por deus e o diabo, um na forma de agir, outro no modo de pensar.
Para Aguilar, são duas dimensões do mesmo personagem, projeções das duas cabeças de Corisco, pois o que Manuel ouve de Sebastião: “Você foi enviado pra ser minha força no sofrimento e na guerra. Você tem de lutar por mim!”, é quase o mesmo que o que ouve de Corisco: “Parece que São Jorge tá me ajudando. Precisamos dum cabra corajoso, um cabra da minha qualidade. Tou gostando da sua cara de macho”.
Ou ainda, o que Antônio diz ao cego Júlio: “Eu não queria mas precisava. Eu não matei os beatos pelo dinheiro. Matei porque não posso viver descansado com essa miséria” que também muito se aproxima do que grita Corisco: “Não deixo pobre morrer de fome!” e do que prega Sebastião: “Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus”. (AGUILAR, 1995, p. 109).
A esta coexistência promovida pelos discursos, Claudio Costa traz a observação das tomadas da câmera de Glauber, que se fixa através de elementos móveis, meios de transportes, que têm justamente a função de promover uma passagem, de fazer algo circular. E toda essa circulação ocorre para que a imagem surja, para que uma determinação se configure. A imagem-movimento tem por condição a passagem ou a troca que produz na aproximação de dois elementos mutuamente excludentes tais como: o vidente e o visível, o visível e o invisível, o homem e o mundo, a imagem e o som, a figura e o fundo, e assim por diante.
Nessa aproximação, uma instância pode se prolongar em outra de maneira que elas se tornem equivalentes e a circulação chegue a um fim ao se formalizar uma unificação. Nesse caso, a imagem só alcança designar, manifestar, ou, no máximo, significar o mundo, o real, o visível. Em outros casos, aproximados os domínios, uma diferença íntima entre os afetos permanece, fissura que jamais cicatriza e através da qual os domínios se comunicam e se revertem infinitamente. Nessa comunicação infinita as instâncias se transformam e o real, transfigurado, torna-se transreal. (COSTA, 2000, p. 133)
Finalmente, podemos afirmar que tanto Glauber Rocha, como leitor de Guimarães Rosa, agregou ao seu repertorio uma estética onde se privilegia a indeterminação, mostrando a incrível aderência da teoria de Iser, ao romance rosiano, pois, em literatura, a encenação torna concebível a extraordinária plasticidade dos seres humanos, que por possuir uma natureza determinável, podem expandir-se no raio praticamente ilimitado dos padrões culturais, ou seja, é da natureza humana e sua multiplicidade de padrões culturais possibilitar formação ilimitada e contínua do ser humano, e portanto da leitura ( e interpretação).

6. Referências bibliográficas

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BARROS, Luitgarde O. C. Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
COSTA, Claudio da. Cinema brasileiro: dissimetria. Oscilação e simulacro. Rio de Janeiro: 7 letras, 2000.
COSTA, Marta M. de. “(A) Claráguas ou A simbologia do elemento aquático em Grande sertão: veredas”. In: Revista Estudos Brasileiros, Curitiba, volume 3, nº 4, p. 225-254, 1977
FREGE, G. Sobre sentido e a referência. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 59-86.
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MACHADO, Maria Christina Matta. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978.
MARÇOLLA, Bernardo Andrade. “A porosidade poética de Riobaldo, o cerzidor: Ritmo, transcendência e experiência estética em Grande sertão: veredas”. Disponível em http://www.scribd.com/doc/9010503/Entre-Guimaraes-Rosa-e-Riobaldo-a-porosidade-poetica-Bernardo-Marcolla em 27/07/2009.
MELLO, Frederico Pernambucano. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A girafa, 2005.
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