terça-feira, 9 de março de 2010

DA TECHNÉ AO DOM: UM DIÁLOGO ENTRE LONGINO E DRUMMOND .

DA TECHNÉ AO DOM: UM DIÁLOGO ENTRE LONGINO E DRUMMOND[1].
Luiz Roberto Zanotti
Prof. Doutorando em Literatura- UFPR



RESUMO: Este artigo analisa os conceitos apresentados na arte poética clássica de Longino, Do sublime (séc.I) em comparação com a arte poética de Drummond, “Procura da Poesia” (1945), a fim de mostrar sua relevância na função que esta “nova” arte poética cumpre na obra de Drummond e, conseqüentemente, no contexto do Modernismo brasileiro. Tanto Longino como Drummond compartilham a firme convicção de prescrever regras em suas poéticas, apesar de elas também possuírem elementos descritivos e, igualmente, a convicção de que, se o método (técnica) é de suma importância, não existe poesia sem o dom (inspiração).
ABSTRACT: This article analyses the concepts presented in the classic poetic art of Longino, Do sublime (séc. I) in comparison with the poetic art of Drummond, “ Procura da poesia” (1945), in order to show his relevance in the function that this "new" poetic art carries out in the work of Drummond and, consequently, in the context of the Brazilian Modernism. As many Longino as Drummond shares the firm conviction of prescribing rules in his poetics, in spite of them also have descriptive elements and, equally, the conviction of which, if the method (technique) is of abridgement importance, there is not poetry without the gift (inspiration)
Palavras-chave: Longino, Drummond, Arte poética prescritiva, Modernismo Brasileiro.
Key Words: Longino, Drummond, Prescriptive poetic art, Brazilian Modernism

Hoje o termo “poética”[2] vem sendo usado pelas mais diversas áreas do conhecimento humano com um significado que não vai muito além de “teoria”. Porém, no decorrer deste ensaio, o termo será focado como uma teoria geral de poesia que define a poesia, suas várias ramificações e subdivisões, formas e recursos técnicos, discutindo os princípios que a regem e a distinguem de outras atividades criativas (PREMINGER e BROGAN, 1974, p. 636). Dentro dessa concepção, pode-se notar a existência do que poderíamos chamar de duas correntes de “artes poéticas”: a que está mais focada em formular uma regra geral para a produção da poesia e, portanto, dá mais valor à sua definição, o que se denomina arte prescritiva, e a que dá mais ênfase à sua discussão, ou seja, a arte descritiva.
Sejam prescritivas, descritivas ou um meio termo entre essas vertentes, pode-se observar que as artes poéticas antigas ressoam nas poéticas concebidas posteriormente, às vezes se somando a estas, enquanto que outras vezes; colocam-se em absoluta contradição. Segundo Abrahms[3], tais poéticas podem ser classificadas como teoria mimética ─ a arte como imitação de aspectos do universo – que está presente em Aristóteles; teoria pragmática ─ em que o poema é construído com o objetivo de surtir efeitos nos leitores – que pode ser encontrada em Horácio; teoria expressiva – a obra de arte como resultante do processo criativo que opera sob o impulso do sentimento e concretiza as percepções, sentimentos e pensamentos do poeta – poética de Longino; ou ainda a teoria objetiva ─ a obra de arte como entidade autônoma, julgada somente por critérios intrínsecos a seu modo de ser – encontrada em Landino.
Apesar de essa classificação buscar estabelecer uma clara distinção entre as várias formas que as poéticas podem assumir, não se pode levar totalmente em conta que essas teorias são mutuamente exclusivas, e o que Abrahms sugere é que o elemento básico para a classificação é o elemento dominante dentro de uma poética.
Neste ensaio, a proposta é buscar uma das diversas possibilidades da relação dialética entre uma poética antiga e uma atual, uma vez que elas ─ apesar de terem sido produzidas com quase vinte séculos de diferença ─ parecem compartilhar de uma poética prescritiva. Para isso, comparou-se a arte poética Do Sublime , de Longino - que estudiosos acreditam ser datada do séc. I d.C. – com uma das diversas artes poéticas escritas por Drummond, Procura da Poesia, publicada no livro A rosa do povo em 1945.
Essas duas poéticas, além de possuírem um caráter prescritivo, apresentam com clareza a suma importância da téchne e do dom na elaboração de uma poesia. A téchne,, ou seja, o método, apresenta-se como o caráter formal de uma criação artística, como uma espécie de contraponto ao dom, considerado a genialidade inata. Para os dois poetas, é impossível, sem uma perfeita harmonia entre a téchne e o dom, atingir-se o sublime, que pode ser designado como uma verdadeira criação literária aliada à grandeza da concepção e emoção.
Assim, apesar do caráter prescritivo das duas artes poéticas, a importância da téchne não elimina o dom, o outro lado da moeda para se produzir uma obra de arte. Essas artes poéticas prescrevem que o método e o dom sozinhos são insuficientes; portanto, é o poeta que, mediando as duas propriedades, vai produzir a obra de arte, o que permite inferir que essas duas poéticas ─ como representativas do conjunto da obra desses dois autores – têm uma predominância para a orientação dentro de uma arte poética expressiva.
O “sublime” de Longino[4] pode ser considerado como um conceito anticlássico e está associado à grandiosidade, elevação e transcendência. Esse conceito vai ser de grande importância na passagem do neoclassicismo para o romantismo, ocupando um local central na estética do século XVIII. Longino inicia a sua poética criticando o mestre da retórica, Cecílio, porque julgava a sua obra insuficiente, no que diz respeito à essência da arte, por haver apresentado o “sublime” somente através de exemplos, não se preocupando em estabelecer “como” e por quais métodos poderia ser obtido. Para Longino, Cecílio teria se limitado a mostrar o “sublime”, sem manifestar como a própria natureza chegaria a determinada elevação.
Desse modo, em seu tratado, Longino não pretende nem definir o sublime ─ uma qualidade inefável ─ , nem apresentá-lo através de exemplos, mas sim identificar as suas fontes. Para o autor, tais fontes estão divididas em dois grupos de capacidades: as que dizem respeito ao gênio inato, e as capacidades ligadas às fontes práticas. No primeiro grupo, considera uma determinada elevação do espírito para formular elevadas concepções, e o afeto veemente e cheio de entusiasmo, capaz de provocar paixões inspiradas. No segundo, leva em conta a disposição das figuras de pensamento e de dicção, que seriam uma espécie de desvios provenientes da imaginação e criatividade, a formulação nobre e a composição magnífica, dignificante e elevada (LONGINO[5], VIII-1).
O sublime aparece como a principal virtude literária, como o eco da grandeza do espírito, o poder moral e imaginativo do escritor presente no seu trabalho, trazendo pela primeira vez a importância das qualidades inatas desse escritor (dom) e não somente as da sua arte (téchne). Longino constata ainda que, na criação da arte, existe natureza e técnica e que é preciso pensar no seu encontro, o que corrobora Pigeaud que, na introdução à Do Sublime (LONGINO, 1996, p. 9-39), observa que o autor encontra, evidentemente, a questão da fronteira, da passagem entre o inato e o adquirido, entre o dom e a técnica, avatar da oposição entre physis e nômos, a natureza e a norma, o dom biológico e a regra. Elabora a sua questão teórica sobre como podemos estimular os dons naturais para a obtenção do sublime:

(...) se examinarmos a natureza, embora quase sempre siga leis próprias nas emoções elevadas, não costuma ser tão fortuita e totalmente sem método (...), compete ao método estabelecer âmbito e conveniência (...), os gênios correm perigo maior, pois se às vezes precisam de espora, muitas outras, de freio.(II,2)

Diferentemente de Longino, que contrapõe sua poética à de Cecílio, a arte poética de Drummond, um dos artífices do modernismo no Brasil, vai ser criada[6] a partir de idéias que já tinham superado as poéticas românticas, parnasianas e realistas. E, num segundo momento, conforme Aschar (2000, p.11-12), vai se distinguir pela mistura de estilos, em que se combinam o elevado e o banal, o grave e o grotesco, pela aplicação da linguagem vulgar a assuntos sérios e vice-versa, pela renovação da temática existencial, ou seja, a busca de novos registros para temas como o tempo, o amor e a morte, pela elaboração de imagens surpreendentes, envolvimento do escritor nas questões sociais e pela reflexão da poesia sobre a própria poesia.
Esses novos registros se aproximam da poética de Longino, na medida em que recusam a simples imitação da realidade. A metapoética drummondiana, como pode ser verificado nos metapoemas Procura da poesia, Consideração do poema, Poesia, O lutador e Segredo, encontra-se, na maioria das vezes, intrinsecamente relacionada à confessada luta do escritor com as palavras, na busca de expressão (AGUILLERA, 2002, p.196).
Como já foi comentado, a poética Procura da Poesia faz parte de um dos mais discutidos e apreciados livros da poesia moderna brasileira, A rosa do povo, obra em que Drummond, além de mostrar sua preocupação social numa época sombria, que foi a ditadura de Vargas, apresenta o seu entendimento sobre “o que é” e “como escrever poesia”. Esse tratamento assemelha-se muito à poética de Longino, no que diz respeito às capacidades necessárias para se criar o sublime. Também para o poeta mineiro, a poesia deve ser encontrada na relação dicotômica entre a téchne e o dom, uma vez que é, ao mesmo tempo, a linguagem de determinados instantes, sem dúvida os mais densos e importantes da existência ─ o que denota a importância da inspiração ─ e também o trabalho com palavras, com o compromisso com a linguagem, isto é, baseia-se num método.
Logo no início de Procura da Poesia, nota-se que Drummond vai se utilizar de uma prescrição negativa, ou seja, como não se deve fazer poesia, quando da utilização de temas cotidianos na sua criação, podendo parecer, àquele a quem a poesia drummoniana não é familiar, que tal prescrição é um convite para não se escrever sobre a cotidianidade. No entanto, a obra de Drummond, assim como toda poesia moderna, traz um forte apelo à utilização de temas do dia-a-dia e da expressão verbal cotidiana que é transcrita para o plano das artes. Portanto, o que o poeta mineiro quer deixar claro, é que a simples emoção que as coisas do dia-a-dia podem evocar no chamado poeta, ou seja, o simples falar das coisas do cotidiano, um falar sem estar sendo regido pelo método, não pode ser confundido com a verdadeira poesia:

Não faças versos sobre acontecimentos.Não há criação nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.Não faças poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica[7].
Drummond não busca relatar o ritmo cotidiano da vida e da morte, do calor e da luz, da confusão e tumulto, mas sim, como apresenta Costa Lima, através do verso “Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida[8]”, indicar o tempo de gasto, de corrosão, a partir do qual sua obra será ladrilhada (COSTA LIMA, 1995, p.131):

Corrosão, como a empregaremos, não se confunde com derrotismo o ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se por com ela em relação aberta. É deste modo que a vida não aparece para o poeta mineiro como jogo fortuito, passível de prazeres desligados do acúmulo dos outros instantes. Ela não é tampouco cinza compacta, chão de chumbo. Ao invés dessas hipóteses, a corrosão que a cada instante a vida contrai há de ser tratada ou como escavação ou como cega destinação para um fim ignorado. Em qualquer dos dois casos — ou seja, quer no participante quer no de aparência absenteísta — o semblante da História é algo de permanente corroer. O princípio-corrosão é, por conseguinte, a raiz que irradia da percepção do que é contemporâneo (COSTA LIMA, 1995, p.131).
Essa negativa de assumir um mero fato cotidiano como poesia também se apresenta como um elemento da mais profunda importância na obra de Longino: “Mas a propósito de todas as coisas desse tipo poderíamos dizer isso: o que é útil e mesmo necessário ao homem está ao seu alcance, mas o que ele admira sempre é o inesperado” (XXXV,5). Aqui a “cotidianidade” pode ser confundida com o que “está ao seu alcance”, e o inesperado na construção da poesia não tem a finalidade de persuadir, e sim de trazer novos significados para os símbolos. O choque suspende o julgamento e nos faz sair de nós mesmos, mergulha-nos no êxtase, tira-nos o fôlego, de emoção e de surpresa (PIGEAUD apud LONGINO, 1996, p.37).
Com relação à emoção, a crítica que Longino faz à poética de Cecílio está baseada, sobretudo, no fato de Cecílio ter omitido a emoção em sua poética. Longino não deixa de advertir que a inclusão da emoção num poema pode ser vista como uma das inúmeras possibilidades de se obter o sublime; essa simples inclusão, porém, como se observou na “cotidianidade” em Drummond, não significa de forma alguma que o sublime e o patético devam andar sempre juntos como se fosse uma regra geral. Para o poeta da Antigüidade, algumas emoções estão separadas do sublime e são totalmente sem grandeza, tais como a pena, o sofrimento e os temores (VIII, 2). Essas emoções tão reais, tão “miméticas”, não são uma garantia para se atingir o sublime, o que também pode ser constatado em Drummond ao apresentar as suas prescrições poéticas:

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escurosão indiferentes.Não me reveles teus sentimentos,que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Mais uma vez a advertência de que a simples emoção, sem estar fortemente apoiada do dom e do método, jamais atingirá o sublime se faz presente. Para Antonio Candido, essa mistura perfeita entre dom e método encontra-se na base do trabalho poético drummondiano, o que possibilita que em seus versos o lugar comum se torne uma revelação:
Para ele (o poeta), a experiência não é autêntica em si, mas na medida em que pode ser refeita no universo do verbo. A idéia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é, significado, graças à escolha de uma palavra que a designa e à posição desta na estrutura do poema. O trabalho poético produz uma espécie de volta ou refluxo da palavra sobre a idéia, que então ganha uma segunda natureza, uma segunda inteligibilidade. Tanto assim, que o poema é geralmente feito com o lugar-comum (...). Nas mãos do poeta o lugar- comum se torna revelação, graças à palavra na qual se encarnou (CANDIDO, 2004, p.92).
Outro importante aspecto em que ambos os poetas concordam plenamente é a importância da liberdade ao se formular outras inteligibilidades, novos sentidos para o lugar-comum, para a “mesmice” do pensamento:

Hoje em dia, porém, (...) desde a infância nos educam para uma escravidão; só falta enfaixarem-nos, desde os mais tenros pensamentos, nos mesmos costumes e cogitações; por não termos provado a mais bela e fecunda fonte de facúndia, refiro-me à liberdade, não passamos de bajuladores geniais. (...) a razão é que a falta da liberdade de palavra efervece imediatamente e ele sente-se como um preso, acostumado aos murros no rosto (LONGINO, XLIV, 3 e 4).

Essa “mesmice” causada pela escravidão do pensamento parece estar de acordo com a consciência de rebanho preconizada por Nietzsche (2001, p.201), para quem: “(...) o pensamento consciente não faz parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é natureza de comunidade e de rebanho”.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

Assim, para Drummond, a “mesmice” do lugar-comum deve aparecer como algo novo dentro de uma poesia; este deve ser enunciado de uma forma muito mais clara e renovadora, como o preparo de “uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças” (DRUMMOND citado em BRAYER, 1978, p.101) ou ainda:

Entendo que a poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos (DRUMMOND citado em BRAYER, 1978, p.101).

Para Emanuel de Moraes (MORAES citado em BRAYER, 1978, p.101), a palavra drummoniana, longe do lugar-comum, apresenta-se como um instrumento de luta e mostra o seu posicionamento no mundo e na arte, e a sua função social:

O canto não é a naturezanem os homens em sociedade.Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.A poesia (não tires poesia das coisas)elide sujeito e objeto.
O poeta lembra que o canto, no sentido de poesia, não é nem Natureza, o que pode ser configurado como dom, nem tampouco Sociedade, que assume o sentido de téchne ou método, visão esta que está de acordo com Longino ao prescrever:

(...) como na maioria dos casos, a impecabilidade se deve à correção da arte, enquanto o sublime, embora não mantenha um plano uniforme, é fruto da genialidade, convém, em tudo, pedir a arte que ajude a natureza, pois talvez consista a perfeição numa aliança estreita de ambas (LONGINO, XXXVI, 4).

Nessa perspectiva, a poesia não pode ser criada apenas a partir de uma das variáveis mencionadas. Não se constrói só com o dom, nem tampouco só com o método (téchne), mas sim com o perfeito trabalho de harmonização entre ambos; ou, como nos ensina Drummond, na eterna luta entre a emoção e a razão, no conflito, na ambigüidade, numa guerra contínua, que acaba por partir o poeta ao meio:

De um lado, as palavras – e com elas, as idéias, a tradição poética, as teorias, o pensamento; de outro, as coisas, isto é, os elementos que se conectam com o real, sentimentos, paixões, os objetos do cotidiano. Drummond escreve entre um “Eu todo retorcido” e a busca de um “sentimento do mundo”. Assim é a poesia de Drummond, em dupla face, uma coisa e ao mesmo tempo seu contrário. (CASTELLO, 2007, p.195)

Após as primeiras três estrofes e parte da quarta estrofe, que são construídas num paralelismo negativista, aparece um primeiro verso afirmativo: “a poesia (não tire poesia das coisas) elide sujeito e objeto”. A ressalva “(não tire poesia das coisas)” está relacionada ao fato de a poesia ser algo que se contém a si mesmo, um misto de conteúdo-continente. Para Drummond, a poesia não pode ser vista como finalidade, como mero atributo circunstancial: “Não acho que a poesia seja meio para se comunicar qualquer coisa, senão que ela própria é algo que se comunica” (DRUMMOND apud SANT’ANNA, 1992, p.195).
Esse sentido “não-utilitário” da poesia, da poesia não como um meio e sim como a própria “coisa”, o sentido de uma poesia que não é um mero portador de uma determinada comunicação e que não se constitui simplesmente em um instrumento para falar sobre qualquer assunto contrapõe-se à sua real significação, ou seja, ser a própria forma que se reflete sobre si mesma, ser o seu próprio assunto, aquilo sobre o que versa. Essa mesma visão “não-utilitária” da poesia apresenta-se em Longino, em suas imagens e aparições, aparecendo concretamente aos “olhos” do auditório:

(...) se o nome aparição é comumente atribuído a toda espécie de pensamento que se apresenta, engendrando a palavra, agora o sentido que prevalece é esse: quando o que tu dizes sob efeito do entusiasmo e da paixão, tu crês vê-lo e tu o colocas sob os olhos do auditório. (LONGINO, XV,1)

Seguindo esse raciocínio, em torno de uma poesia definida como a própria “poesia”, pode-se ainda constatar que, em relação à quarta estrofe de Procura da Poesia, a elisão (“elidir”) do sujeito e objeto esclarece a posição da supressão do cogito cartesiano em sua relação sujeito-objeto. Essa relação sujeito-objeto é vista pela Teoria do Conhecimento em sua vertente cartesiana como a forma com que o sujeito deve buscar o conhecimento, ou seja, de uma maneira “objetiva”, acreditando na possibilidade de se conseguir uma exterioridade absoluta e livre de interferências subjetivas (ou uma subjetividade absoluta livre de interferências objetivas).
A fusão do sujeito e objeto proposta por Drummond elimina toda a possibilidade de uma leitura objetiva da realidade, e o coloca próximo a uma postura existencialista de Heidegger que, através do seu conceito de “ser-no-mundo”, traz uma nova relação espacial e funcional entre o ser (sujeito) e o mundo (objeto). Tal relação elimina a relação de contenção do sujeito pelo mundo (como a relação da água com o copo), ou ainda a associação a uma posição de manipulação, transformação ou de interpretação do mundo, seja ela subjetiva ou objetiva (HEIDEGGER, 2001, p.92).
Sant’Anna (1992, p.195) explica essa elisão através de algumas categorias de objetos que Bachelard apresenta em seu estudo A Poética do Espaço e que nomina como “objetos que se abrem”, “objetos-sujeitos” e “objetos-mistos”, cuja função é “guardarem” outros objetos, ou seja, espaços que condensam outros espaços. Seguindo a linha proposta pelo crítico e poeta brasileiro e, ainda, calcando-se na concepção bachelardiana dos devaneios materiais, pode-se perfeitamente entender essa “fusão” através da imaginação material do fogo íntimo, em que aparece de maneira clara a elisão na dialética fundamental do sujeito e do objeto. “O ser amante quer, então, ser puro e ardente, único e universal, dramático e fiel; e por fim, instantâneo e permanente” (BACHELARD, 1999, p.163). Também pode ser compreendida (a fusão) em relação ao elemento terra e suas cavernas, no sentido bachelardiano de “se perder”, no medo de se perder, perder a nós mesmos, a obliteração da relação sujeito e objeto (BACHELARD, 2003, p.163).
Assim compreendida, a poesia é uma procura que se realiza enquanto procura, é um composto sujeito-objeto resultante do conflito inicial Eu versus Mundo. E como tal, ela se ergue como um produto autônomo, acabado, válido por si mesmo. (SANT’ANNA, 1992, p.195)
A seguir, Procura da Poesia volta a seu paralelismo sob uma prescrição negativa realçando-se a busca do sublime que, nessa poética, pode ser visto como a própria busca da verdade:

Não dramatizes, não invoques,não indagues. Não percas tempo em mentir.Não te aborreças.Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de famíliadesaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Nessa estrofe, Drummond trata da inutilidade do lirismo exacerbado e do uso excessivo da linguagem figurada e rebuscada, que acabam por fenecer com o tempo. Essa posição ecoa na arte poética Poética e Lirismo, de Manuel Bandeira, em que o poeta declara estar farto do lirismo comedido, comportado e de repartição pública, e na poética de Longino, que através de Platão critica o lirismo rebuscado e fútil:

Aqueles, diz ele, que não experimentaram a razão e a virtude, sempre metidos em banquetes e quejando deleites, são puxados por assim dizer, para baixo; por isso vagueiam vida em fora, sem jamais erguerem os olhos para a verdade (...) (PLATÃO in LONGINO, XIII,1).

Longino vai, ainda, além em sua reprimenda à utilização de palavras “ornamentais” para atingir o sublime, pois para ele esse excessivo embelezamento do estilo é o caminho mais curto para o malogro:

(...) nada é grande quando haja grandeza em desprezá-lo; por exemplo, riquezas, honrarias, fama, realeza, tudo mais que apresenta uma exterioridade teatral, ao sensato não pareceriam bens superiores, (...) mais ou menos assim se deve examinar se os passos elevados em verso e prosa não têm uma aparência de uma grandeza semelhante, a que se tenha juntado grande soma de elementos forjados ao acaso, removidos os quais, aliás, eles se revelam ocos, havendo mais nobreza em desprezar do que em admirar. (LONGINO, VII,1)

Nesse direcionamento, não só para Longino e Drummond, como também para Bandeira, o sublime e a grandiosidade não coadunam com os “banquetes” e sim com aqueles que conheceram a razão e a virtude, tendo a capacidade de se desprender de si e de constituir outro corpo, essencial, desvencilhado do acessório, do não-significante, do tumulto confuso. Para Drummond, mais do que a grandiloqüência, a poesia está relacionada à destruição, ao tempo “corrosivo”, a uma consciência espaço-temporal que, segundo Affonso Romano de Sant’Anna (1992, p.144), vinha se dilatando já nos primeiros escritos e que se expande amplamente sobre a cidade, o país, o mundo:

Seus poemas são depositórios vocabulares de um período da História, documento crítico de uma época. Por isso, não há de se estranhar que na expansão da consciência temporal viesse inserido o germe da destruição, que compromete e impulsiona a consciência em trânsito (SANT’ANNA, 1992, p.144).

Drummond, assim como o filósofo alemão Walter Benjamin, toma o propósito de liberar a enorme energia da história confinada no “era uma vez” da narrativa histórica clássica: “(...) a história que mostrava as coisas como elas ‘realmente foram’ revelou-se o narcótico mais forte do nosso século” (BENJAMIN citado em TAUSSIG, 1993, p.15). Esse germe da destruição parece querer levar a palavra à morte, pois como ainda expõe Benjamin, ao falar sobre a alegoria, “um objeto só assume um caráter novo, quando queremos expressar por meio dele não as suas características naturais, mas as que nós por assim dizer lhe atribuímos” (BENJAMIN, 1986, p.36).
Finalizando o primeiro movimento do poema, Drummond continua aludindo a um dos seus repertório mais constantes; ou seja, o desdobramento do seu próprio “eu interior” numa outra pessoa, “tu”; ordenando a esse “tu” que não faça versos sobre ele próprio, sobre a sua própria história ─ “Não recomponhas tua sepultada e merencória infância”─ o que, como já foi visto, aparenta, num primeiro momento, contradizer a sua própria obra (memórias, cotidiano, etc.).

A ênfase histriônica ou fanática no lado misterioso do misterioso não nos leva longe; penetramos no mistério apenas na medida em que reconhecemos no mundo cotidiano, graças àquela ótica dialética que percebe o cotidiano como algo impenetrável e o impenetrável como algo cotidiano. (BENJAMIN,1986,p. 29)

Ainda, segundo Marlene Correia (2002, p.41): “Essa intertextualidade paradoxal e dramática mobiliza a expectativa do leitor, inseguro diante desta ‘pedra no meio do caminho’ entre ele e o poema, que lhe lança o desafio de um entendimento adequado do paradoxo”.

Não recomponhastua sepultada e merencória infância.Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação.Que se dissipou, não era poesia.Que se partiu, cristal não era.

Após esse primeiro movimento, na procura pela “verdadeira” poesia, em que trata de alertar para a problemática da suficiência poética em relação aos assuntos a serem abordados e da profunda necessidade do dom, o poeta retorna, num segundo movimento do poema, à sua busca pela poesia, afirmando que o seu traço definidor – a poeticidade propriamente dita – radica no nível material, e sua específica manipulação no “reino das palavras”. Para Correia (2002, p.41) esse procedimento “(...) convence mais eficazmente o leitor, antes submetido à difícil prova da perplexidade, solucionado-lhe o impasse e devolvendo-lhe a distensão”:

Penetra surdamente no reino das palavras.Lá estão os poemas que esperam ser escritos.Estão paralisados, mas não há desespero,há calma e frescura na superfície intacta.Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Nessa estrofe encontramos um paradoxo, pois se as palavras estão mudas, o poeta está surdo e não há nenhum movimento, como se pode “colher” os poemas que repousam calma e frescamente? Para Antonio Candido (2004, p.92), a solução está na inspiração:

O trabalho necessário a isto é grande parte do que chamamos inspiração. Consiste na capacidade de manipular as palavras neutras, “em estado de dicionário” (que podem servir para compor uma frase técnica, uma indicação prática ou um verso) e quebrar o seu estado de neutralidade pelo discernimento do sentido que adquirem quando combinadas, segundo uma sintaxe especial. Inicialmente, é preciso rejeitar os sistemas convencionais, que limitam e mesmo esterilizam a descoberta dos sentidos possíveis.

De forma semelhante, Longino, na sua busca pelo sublime, concorda que a inspiração é chave para a colheita dos poemas e, portanto, do sublime:

(...) educar as almas em direção ao grande e torná-las prenhes, se pode assim dizer, de uma exaltação genuína. (...) De que maneira dirás? Escrevi em algum lugar: o sublime é o eco da grandeza da alma. Disso decorre que mesmo sem voz seja admirado às vezes o pensamento totalmente nu, em si mesmo, pela própria grandeza da alma (...) (LONGINO, IX, 1 e 2).

Assim, a ligação entre o sublime e a inspiração se apresenta na forma de um eco, pois conforme Pigeaud no prefácio de Do Sublime (LONGINO, 1996, p. 19):

(...) o eco é aquilo que ressoa sem expressão. O sublime pode ser aquilo que não se diz, que não se enuncia, mas que se pode ter contato. Essa admiração bruta é o encontro com o pensamento nu, o pensamento em si mesmo, o grande pensamento. Pode-se ouvi-lo, de alguma forma, ressoar no silêncio. Ele tem força suficiente para se fazer ouvir sem voz, por sua própria grandeza.

O poeta mineiro mostra a importância da imaginação na utilização das palavras em suas relações umas com as outras, a necessidade de se ordenar estruturas e de se associar vocábulos que transformam o lugar-comum em revelação, o que, segundo Candido (2004, p.93), faz com que se perceba que a germinação do poema como um todo é o que guia o leitor nessa aventura órfica:

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavrae seu poder de silêncio.Não forces o poema a desprender-se do limbo.Não colhas no chão o poema que se perdeu.Não adules o poema. Aceita-ocomo ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.

Ainda, seguindo Candido (2004, p.93):
(...) o poema é, para além das palavras, uma conquista do inexprimível que elas não contêm e diante do qual devem capitular, mas que pode manifestar-se como sugestão misteriosa nas ressonâncias que elas despertam, uma vez combinadas adequadamente; e que, indo perder-se nas áreas de silêncio que as cercam e se insinuam entre elas, são uma propriedade do poema no seu todo. A obsessão mallarmeana da palavra como violação de um estado absoluto, que seria a não-palavra, a página branca, mas que ao mesmo tempo é nosso único recurso para o naufrágio no nada, se insinua neste poema decisivo e explica o recolhimento, a cautela com que o poeta segue na busca do equilíbrio precário e maravilhoso, o arranjo da estrutura poética, que só pode ser obtido ao fim de um empenho de toda a personalidade.
Para fazer frente a toda essa forma (espaço) inexprimível e torná-la definitiva e concentrada, Drummond mais uma vez recorre a um tempo que também não pode ser contabilizado, pois é um tempo de convivência, um tempo de paciência, que encontra eco na arte poética de Horácio, para quem não se deve contrariar Minerva, a deusa da sabedoria: “Se (...) escrever algo, sujeite-o aos ouvidos do crítico Mécio, aos de seu pai e aos meus e retenha-o por oito anos, guardando os pergaminhos; o que você não tiver publicado poderá ser destruído; a palavra lançada não sabe voltar atrás” (HORACIO, 1992, p.67).

Chega mais perto e contempla as palavras.Cada umatem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,pobre ou terrível que lhe deres:Trouxeste a chave?

No entanto, mesmo com o domínio da paciência, para se obter essa forma no espaço ─ a configuração objetiva que encerra o sentido global também exige que cada palavra seja escolhida, entre tantas outras possibilidades de metáforas ( o poeta tem que se ver frente a frente às mil faces das palavras), e incluída dentro da cadeia sintagmática do poema; numa combinação perfeita entre o dom e a techné:

Como entidades isoladas, as palavras espreitam o poeta e podem armar-lhe tocaias. Ele então as propicia, renunciando ao sentimento bruto, à grafia espontânea da emoção, que arrisca confundi-las num jorro indiscriminado; elas capitulam e deixam-se colher na rede que as organizará na unidade total do poema. Obra difícil, perigosa, pois essa exploração depende da sabedoria do poeta, único juiz no ato de arranjá-las. (CANDIDO, 2004, p. 94).

Essa obra perigosa só pode ter êxito se, como já foi destacado, for usada a chave da inspiração, única possibilidade para se adentrar no reino das palavras e se obter o sublime:

(...) as mais das vezes o pensamento e a linguagem se implicam mutuamente, (...) a escolha dos vocábulos próprios e magníficos maravilha e fascina os ouvintes e constitui a máxima preocupação de todo orador e todo escritor, porque florindo de per si, depara aos discursos, como esculturas belíssimas (...). Realmente a beleza das palavras é a luz do próprio pensamento. (LONGINO, XXX, 1)

Na passagem a seguir, Drummond alerta que a poesia é frágil e relativa, pois as palavras estão prontas a cada instante para escapar ao comando e se recolherem à ausência de significado poético, ao limbo do cotidiano, onde são veículos sem dignidade especial. Também adverte da possibilidade de elas permanecerem no universo inicial do sonho e do inconsciente em que se encontravam, tornando infrutífero o trabalho de colheita do poeta, avaliando-o como quem falhou, como quem não soube dispô-las na unidade expressiva. “O gelo do malogro, na fímbria entre a deliberação e o acaso, passa nos versos finais deste poema, um dos mais admiráveis da literatura contemporânea.” (CANDIDO, 2004, p.94)

Repara:ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras.Ainda úmidas e impregnadas de sono,rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Para trazer um pouco de luz aos últimos versos, cabe recorrer novamente à imaginação bachelardina, ao comparar o “rio difícil” à figura de um calabouço: “O calabouço é um pesadelo e o pesadelo é um calabouço” (BACHELARD, 2003, p.172). Ainda, considerando-se a imagem de calabouço e de rios subterrâneos, é fácil imaginar a presença do frio (do gelo, do malogro), que se apresenta como uma das maiores proibições para a produção imaginária em sua busca pelas imagens dos símbolos e das poesias. “Enquanto o calor faz nascer imagens, o frio cadavérico é um obstáculo a elas” (BACHELARD, 2003, ps.204, 207).
Tal dificuldade na busca do sublime se encontra nas duas artes poéticas analisadas: a mesma preocupação que Drummond apresenta em forma de um fio tênue que separa a conquista de um espaço elegantemente preenchido pelas palavras e a frieza de palavras ermas de melodia e conceito pode ser encontrada em Longino:

(...) Difere Cícero de Demóstenes nas passagens grandiosas. Este, com efeito, eleva-se ordinariamente a um sublime alcantilado. Cícero se espalha. O nosso orador (Cícero), visto como, por assim dizer, queima e juntamente despedaça tudo com a sua violência e mais a sua rapidez, o seu arroubo, o seu engenho, pode ser comparado a um tufão ou um raio; Cícero, creio, é como uma queimada alastrada, que grassa por toda parte, devoradora, de fogo abundante e duradouro, sempre a arder, distribuindo aqui e acolá e realimentando espaços (LONGINO, XII,4)

Após essa análise, pode-se afirmar que esse compartilhamento de idéias contidas nas poéticas de Longino e Drummond pode contribuir, sobremaneira, não só para o entendimento da importância da poesia – nos seus aspectos culturais, sociais, e por que não dizer existenciais ─, como também para fazer um alerta aos poetas pós-modernos da fundamental importância da dialética entre o dom e a téchne. Além disso, o estudo realizado pode ainda evidenciar a extrema dificuldade que o poeta encontra ao escrever o poema, seja pela necessidade de tornar o arranjo das palavras sublime, seja para evitar cair no campo do patético ou na “mesmice”.
Enfim, as poéticas de Longino e Drummond parecem trazer em seu cerne a mensagem preconizada por Zaratustra” (NIETZSCHE, s/d, p.49): “Uma nova altivez ensinou-me o meu eu, e eu a ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas sim, trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido da terra. (...) Assim falou Zaratustra”.

[1] Trabalho elaborado durante o curso de Teorias de Poesia ministrado pela Profa. Dra Sigrid Renaux.
[2] Usaremos durante este ensaio os termos “poética” e “arte poética” indistintamente, como sinônimos.
[3] Essa classificação diz respeito à orientação que um autor dá para a sua obra como um todo (ABRAHMS, 1953, p. 3-29)
[4] Apesar da autoria de Do sublime ser ainda discutida, e podendo ter a autoria de Cassius Longinus, Dionysius Longinus ou até mesmo Dionysius de Halicarnassus, entre outros, adotaremos Longino como o autor “anônimo” do tratado.
[5] As referências a Longino são todas do livro Do Sublime e identificadas pelo algarismo romano que identifica a ordem do discurso
[6] É interessante notar que poética, que vem grego poien (fazer, criar), é o estudo da criação poética em si mesma (KOSHIYAMA citado em BOSI, 2003).
[7] Todas as citações de Procura da Poesia foram retiradas do livro A rosa do povo, conforme bibliografia.
[8] Verso do poema Nosso Tempo


Bibliografia

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Do “Rei do Cangaço” ao “Auto de Angicos”: o caminho intermidiático de Lampião

Do “Rei do Cangaço” ao “Auto de Angicos”: o caminho intermidiático de Lampião

Mestrando Luiz Zanotti[1] (Uniandrade)

Resumo:
O ensaio consiste da análise das relações intermidiais entre o filme “Lampião, o rei do cangaço” (1963) – com direção de Carlos Coimbra, baseado nos livros “Lampião, o Rei do Cangaço”, de Eduardo Barbosa, e “Capitão Virgulino Lampião”, de Nertan Macedo –; e o espetáculo teatral “Virgolino e Maria Déa: Auto de Angicos” (2008) – com direção de Amir Haddad, a partir do texto “Auto de Angicos”, de Marcos Barbosa – ; relatando o difícil processo desse trânsito intermidiático. O filme conta a história de Lampião em seu aspecto épico, com o cangaceiro se apresentando como um líder que luta a favor dos humildes contra uma aristocracia rural; enquanto o espetáculo teatral recria as últimas horas de vida e intimidade de Lampião e sua mulher Maria Bonita, momentos antes de os dois serem mortos pela polícia alagoana; privilegiando a relação amorosa do casal. Tanto a adaptação fílmica como a cênica são de difícil execução, sendo que a análise se propõe a identificar os elementos que possibilitaram a travessia dos romances para o filme e do texto de Marcos Barbosa para o espetáculo, bem como o diálogo entre as duas produções.

Palavras-chave: Intertextualidade, Intermidialidade, Lampião, Carlos Coimbra, Amir Haddad.

Um teatro sem arquitetura
Uma dramaturgia sem palco
Um ator sem papel
(Amir Haddad)

Lampião e Maria Bonita se tornaram figuras lendárias no panorama sociocultural brasileiro devido não só aos seus feitos, mas também devido a uma mídia ávida de notícias sensacionalistas e de todo um trabalho literário – onde predomina a literatura de cordel – e a musicalidade.
No que tange à representação nas diversas modalidades artísticas, de uma forma geral, as duas personagens adquiriram uma infinidade de papéis e caracterizações, que vão desde as suas apresentações como pessoas suaves e delicadas interiormente, mas que a miséria e a injustiça social fizeram com que embarcassem numa vida de crimes sem volta, com Lampião representando uma espécie de “Robin Hood dos sertões”, como no conto infantil Lampião e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço (2005), de Liliana Iacocca; até a retratação do casal como pessoas de uma violência impar, no texto Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão (2007) de Luitgarde Barros que desmente esse lado "Robin Hood" do cangaceiro, mostrando que os pequenos proprietários rurais do nordeste fugiam de lá para o sul do país, não por causa da seca, mas porque Lampião ameaçava o mais pobre e a sua sobrevivência.
No entanto, de uma maneira geral, Lampião, bem antes de morrer, já era tratado como herói, um nobre salteador, que tomava dos ricos para dar aos pobres, inspirando poemas, músicas e livros. Uma das poucas exceções na época foi a propaganda de um remédio que chegou a comparar os males que ele causava à sociedade com os distúrbios provocados pela prisão de ventre. Mas a referência ao cangaceiro como figura nociva era exceção.
Nossa análise procura – em meio a esta verdadeira epopéia intemidiática que contempla a música, a dança, a coreografia, a literatura adulta e infantil, o cordel, a dramaturgia, o cinema, a fotografia, as artes plásticas – verificar as relações intermidiais e intertextuais entre o filme Lampião, o rei do cangaço[2], de Carlos Coimbra e o espetáculo teatral Virgolino e Maria: Auto de Angicos[3], de Amir Haddad.
O filme Lampião (1962), assim como A morte comanda o cangaço (1960), também com a direção de Carlos Coimbra, seguiram o rastro do êxito retumbante de O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. O esquema narrativo dos filmes de Coimbra se estruturava no ‘western’ americano, num abrasileiramento que propiciou um novo gênero, o chamado nordestwestern ou nordestern[4], composto por filmes ambientados na região nordestina, espaço, onde se verificou a ocorrência do fenômeno cangaço. O novo gênero fez o encantamento da platéia através de uma temática brasileira, da indumentária original e do forte esquema musical, apesar do esquema simplório no estabelecimento do desenvolvimento do conflito.
O espetáculo teatral Virgolino, com direção de Amir Addad, baseado no texto Auto de Angicos, de Marcos Barbosa, transpõe a lendária relação entre Lampião e Maria Bonita para a contemporaneidade, transformando os protagonistas, que dentro do mito do Cangaço, às vezes assumem a posição de assassinos sanguinários, enquanto em outras são tidos como heróis, em um casal discutindo assuntos cotidianos e sonhos.
Apesar de quase cinqüenta anos de afastamento, os dois espetáculos trazem a lenda de Lampião para frente do público, mas enquanto Lampião tem uma produção cinematográfica simplória e baseada na tentativa de trazer a ilusão, a peça teatral Virgolino foi produzida a partir de elementos constituintes do teatro pós-dramático (LEHMANN, 2008), no sentido de despir-se totalmente do caráter ilusório.
A nossa análise se inicia buscando as relações intertextuais e intermidiais que caracterizam ambas as manifestações artísticas (Lampião e Virgolino), pois toda obra de arte possui relações intertextuais, não apenas, de uma forma direta, com outras obras de arte de estatuto igual ou comparável, e sim, de uma forma indireta, com todas as obras que influenciaram essas obras de igual estatuto: “De maneira mais direta: qualquer texto que tenha dormido com outro texto, dormiu também, necessariamente, com todos os outros textos com os quais este tenha dormido” (STAM, 2003, p. 226).
O filme Lampião será estudado a partir da sua característica de uma transcriação elaborada a partir dos romances: Lampião, Capitão Virgulino (1975) de Nertan Macedo e Lampião, Rei do cangaço (s/d) de Eduardo Barbosa (s/d), e do filme Rastros de ódio (1956), de John Ford.
É importante notar que Lampião é bem semelhante como a grande maioria de filmes brasileiros de cangaço[5], pois cada filme nos diz mais ou menos a mesma coisa, da mesma maneira, com os mesmos elementos. A principal característica de todos esses filmes é o seu esquema dramático – tipo faroeste americano – centrado na personagem do herói, e esse nunca é o cangaceiro do filme; a estória que nos é contada nunca é a história da personagem do cangaceiro:

Encontramos esse herói entre o bando de cangaceiros, mas ele não é exatamente um cangaceiro, sente-se deslocado, é o que poderíamos chamar de um “cangaceiro desajustado”; encontramo-lo relacionado com o cangaço, mas invariavelmente a sua relação com o cangaço são de conflito. (BERNARDET e RAMALHO JUNIOR, 2005, p. 33)

Essa relação herói-cangaceiro pode ainda ser verificada, um aspecto comum dramático dessa série de filmes, no conflito que coloca de um lado, o cangaceiro propriamente dito e seus valores; de outro, os valores que o herói opõe aos primeiros. Esses valores são geralmente figurados por uma mulher, que com o seu amor vai fazer com que o herói se desligue (ou pense se desligar) do cangaço, se opondo à personagem do cangaceiro. Essa imagem do cangaceiro em seu lado “bom”, como o governador do sertão, o justiceiro, o que dá dinheiro aos pobres, o estrategista, o líder de combate – é um tema que aparece desde o filme O Cangaceiro:

Dessa forma, o esquema dramático constante nos filmes de cangaço, e os temas e valores persistentemente valorizados, demonstram que o cangaceiro como tal não é tratado pelo cinema de cangaço. Desconhece-se o cangaço como função social aceita e reconhecida, com seus problemas específicos. Pelo contrário, esse cinema é a negação do cangaceiro como tal: enfoca-o justamente como uma espécie de excepcional; o cangaço aparece como um mal-entendido entre pessoas e instituições, um engano passageiro, característica acessória da pessoa, fenômeno que ocorreu como poderia não ter ocorrido. Assim, o cangaceiro-herói-de-filme-brasileiro-de-cangaço – dentro do enredo, com elemento dramático de maior importância – necessita sempre de uma “explicação”: há infalivelmente a explicação justificativa “de como e porque me tornei aparentemente cangaceiro, mas no fundo não sou”. O herói pode então ser “desculpado” do cangaço. (BERNARDET e RAMALHO JUNIOR, 2005, p. 49)

A visão do cangaceiro, como alguém de índole boa, que somente depois de ter algum ente querido morto, resolve fazer a justiça com as próprias mãos está presente no romance de Nertan Macedo:

[...] o velho José Ferreira acordava sempre muito cedo. E em certa ocasião, depois do aviso que lhes deram os filhos, levantou-se da rede e foi soprar o fogo para fazer café. [...], mal teve tempo de alçar a cabeça, para ver de onde partiam aqueles disparos. E quando os filhos menores acorreram, encontraram-no tombado numa poça de sangue. [...] Nessa madrugada nasceu realmente Lampião. (MACEDO, 1975, p. 38)

A violência que é justificada pela necessidade de vingança foi um dos principais motivos do sucesso do western Rastros de ódio (1956), de John Ford, onde Ethan Edwards (John Wayne) é um homem que parte em busca de vingança contra os índios que exterminaram sua família, ao mesmo tempo, que tenta resgatar, com vida, sua sobrinha.
Dessa forma, Lampião, é trabalhado dentro dessa característica “nordestern” do cinema brasileiro, com uma relação intertextual com os filmes de faroeste americano, ao mostrar a história de um jovem, filho de um pequeno proprietário rural que sabia ler e era hábil artesão em couro, que resolve vingar a morte do pai. Essa justificativa para a violência da personagem é encontrada na introdução de Eduardo Barbosa no seu livro sobre Lampião, quando fala que todos nós, bem ou mal, conhecemos as histórias de Robin Hood, de Dick Turpin, o salteador de estradas; e de Lampião; mas enquanto dos dois primeiros, só conhecemos o lado “bom”, de Lampião, só sabemos do lado “mau” No entanto, todos três foram “cangaceiros” e assaltaram, roubaram e mataram.

A lenda, entretanto, glorificou Robin Hood e Dick Turpin como dois paladinos da causa do povo, oprimido pelos senhores feudais, contra os quais lutavam, em favor da sua gente. O fenômeno Lampião é o mesmo. Todos nós temos o nosso lado bom e nosso lado mau. No Rei do Cangaço, triunfou o lado bom, depois de conhecer Maria Bonita. Assim, podemos afirmar que Lampião foi o nosso Robin Hood ou o Dick Turpin das picadas do sertão. (BARBOSA, s/d, p. 9)

Porém, se de uma maneira geral, prevalece nas artes, uma forma generosa de se representar Lampião, sempre retratando o seu lado bom e justiceiro, existem textos que apontam para uma outra perspectiva moral. Rodrigues de Carvalho (s/d) apresenta Lampião como possuidor de uma crueldade comparável a Hitler, e passivo de ser classificado, dentro dos quadros da psicopatologia, num quadro de sadismo: “Isto me faz pensar que não há uma só humanidade, mas duas: a do Bem e a do Mal. Felizmente pertencemos a primeira, pois nos repugna praticar semelhantes barbaridades” (PEREIRA da SILVA citado em CARVALHO, s/d., p. VII).
Como referencial teórico para o estudo da relação intermidial entre Lampião e Virgolino, usaremos a teoria da hipertextualidade desenvolvida por Gérard Genette (2005), que afirma:

Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente hipertextos), todas as obras derivadas de uma obra anterior, por transformação ou por imitação. Dessa literatura de segunda mão, que se escreve através da leitura, o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa a regra. Quem ler por último lerá melhor. (GENETTE, 2005, p. 8)

O objeto da poética é a transtextualidade ou transcendência textual do texto, que Genette define como “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta com outros textos”. Na nossa verificação de como se dá o alinhamento de Virgolino em relação a Lampião, consideramos a relação de hipertextualidade, o que significa: “(...) toda relação que une um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota, de uma forma que não é a do comentário.” (GENETTE, 2005, p. 19). Para Genette, as práticas hipertextuais podem ainda serem classificadas pelas categorias de “relação” (de transformação ou de imitação) e de “regime” (lúdico, satírico e sério), sendo que:

A transformação séria, ou transposição, é, sem nenhuma dúvida, a mais importante de todas as práticas hipertextuais, principalmente – provaremos isso ao longo do caminho – pela importância histórica e pelo acabamento estético de certas obras que dela resultam. Também pela amplitude e variedade dos procedimentos nela envolvidos. (GENETTE, 2005, p.51)
Na nossa análise, buscamos verificar os hipotextos de Barbosa, cujo texto (hipertexto) será por sua vez, um dos hipotextos do texto espetacular Virgolino de Amir Haddad. Auto de Angicos foi elaborado a partir de uma série de intertextos da figura de Lampião, que já se apresenta no inicio do enredo através da música Acorda Maria Bonita de Antonio dos Santos: “Acorda Maria Bonita / Levanta vai fazer o café/ Que o dia já vem raiando / E a polícia já está de pé”:
Virgolino. (sem se virar) Quando é que tu vai aprender a não se achegar por trás, se espreitando?
Maria não responde. Após algum tempo, retoma a conversa:
Maria: Levantou cedo. Fica indo nessa toada, daqui a pouco nem dorme mais. Ainda está escuro.
Virgolino. Clareando
[...]
Virgolino. Tem café? (BARBOSA, s/d, p. 1) Essa intermidialidade aparece também na referência ao trabalho fotográfico do mascate Benjamin Abrahão:
Virgolino. Eu falo, tu não escuta. Toda revista que eu pego, e jornal, a peste que seja, tudo tem noticiário meu. Tudo tem. Foto grande assim, que tu já viu. E já estou com vontade é de arranjar um retratista pra fazer mais pose minha e dos cabra. Foto nova, que as outra o povo já viu. (BARBOSA, s/d. p. 5)
E principalmente no filme Lampião, quando na ultima cena, Lampião e Maria Bonita são mortos pela volante na região de Angicos que é localizada no estado do Rio Grande do Norte:
De súbito, uma rajada ensurdecedora de metralhadora. Escuridão. Silêncio.
Um tempo.
Luzes. Outra vez o alarido da guerra, mas agora Lampião está morto, baleado. [...]
Um tiro. Outra vez, escuridão.
Maria. Valei-me, Nossa Senhora!
Outro tiro. Silêncio.
Um tempo.
Luzes. Lampião e Maria mortos, lado a lado. Os dois corpos decapitados. (BARBOSA, s/d, p. 36-37)
Ainda é interessante de ser verificado, como Auto de Angicos, retoma a idéia do eterno retorno presente em Lampião. Se no momento final de Lampião, Coimbra mostra um garoto colocando em sua cabeça, o chapéu que pegou de Lampião, numa clara alusão, que apesar de terem matado Lampião, outros “Lampiões” iriam aparecer. Barbosa, após a morte do casal cangaceiro, agora já vestidos com seus trajes tradicionais, faz com que eles retomem um diálogo anterior. Dessa forma, ao se apresentar Lampião como um hipotexto de Auto de Angicos , que por sua vez é o hipotexto de Virgolino, pode-se considerar que a montagem (releitura) do mito, feita por Amir Haddad, também possui importantes aspectos de intermidialidade em relação a essas duas obras, como por exemplo, na locução logo no início da encenação:
OFF: Ninguém se lembra de um baixinho simpático e de cara fechada chamado Antonio dos Santos, mas todos já ouviram falar com certeza no famoso Volta Seca, o mais jovem dos cangaceiros de Lampião.
Nessa gravação, estão fixadas na voz de Volta Seca e na maior pureza de suas origens, as cantigas do grupo de bandoleiros que por tantos anos assolou o sertão nordestino. Comecemos pela madrugada vermelha radiando no acampamento: “Acorda, Maria Bonita [...][6]”. No entanto, embora Auto de Angicos, assim como o teatro de Amir Haddad, possua vários aspectos de Lampião, o texto de Marcos Barbosa ao retomar a morte dos dois cangaceiros em Angicos, apresenta uma mudança fundamental sobre o hipotexto de Carlos Coimbra, no que diz respeito à transformação na forma da apreensão moral do mito, a partir de um novo Zeitgeist que se apresenta. Dessa forma, muito mais que uma simples imitação, essa derivação hipertextual se dá pela transformação séria, que Genette chama de transposição.
Ainda seguindo Genette, ele sugere uma divisão possível, no interior do regime sério, entre dois tipos de funções. A função prática ou sócio-cultural:

[...]ordem prática ou, se preferirmos, sócio-cultural: [...] Ela responde a uma demanda social, e se esforça legitimamente para retirar desse trabalho um proveito – donde seu aspecto freqüentemente comercial, ou, como se dizia antigamente, de “subsistência”: freqüentemente mais próximo, diria Veblen, da necessidade do que da arte. (GENETTE, 2005, p. 81)

Auto de Angicos, diferentemente de Lampião, trabalha numa trama realizada por Marcos Barbosa com a predominância do cunho amoroso e o político-social, ao encenar o casal de cangaceiros na sua vida cotidiana de um casal. O casal – composto por duas figuras lendárias – também possuem momentos de intimidade, e são iguais a qualquer outro casal. Barbosa ao ajustar o enfoque dessa trama para a realidade atual, objetiva trazer uma nova forma de apreensão, pois o texto – num panorama onde a divisão “mocinho-bandido” já não faz mais sentido frente a novos paradigmas – proporciona uma nova forma de se pensar o sujeito. “O homem moderno, que até aqui era visto como um sujeito unificado, com uma ancoragem estável no mundo social, tem a sua identidade em colapso através do deslocamento ou ‘descentração’ do sujeito” (HALL, 2004, p. 9).
Com relação à segunda função, a estética, Genette (2005, p. 82) afirma:

Esta é a sua função propriamente criativa, que ocorre quando um escritor se apóia em uma ou varias obras anteriores para elaborar aquele na qual investira seu pensamento ou sua sensibilidade de artista. Este é evidentemente o traço dominante da maior parte das ampliações, de certas continuações, e das transposições temáticas.

A função estética nessa análise intermidiática é de suma importância, pois, para Haddad[7], a mera re-contextualização do texto, necessariamente não determina uma abordagem cênica mais contemporânea. Como exemplo ele comenta a respeito da montagem baiana de Auto de Angicos, que se distanciou bastante de uma perspectiva épica, para adotar uma encenação dramática, com as personagens Lampião e Maria Bonita caracterizadas, ou seja, buscando a “personificação” do ator a partir de trajes do cangaço, defeitos físicos de Lampião, e assim por diante. Dessa forma, Haddad, assim como Gatti (citado em Sarrazac, 2002, p. 34), acredita que é preciso intervir na conversão das formas, pois cada assunto tem uma teatralidade que lhe é própria.
Assim, nesse sentido Haddad cria Virgolino, se afastando dos estereótipos de Lampião e Maria Bonita, ao re-nomear a peça como: Virgolino e Maria Déa: Auto de Angicos, trazendo para o palco, não apenas a lenda, mas também dois seres humanos tão iguais a tantos outros. Essa concepção estética se afasta não só de Lampião, e sua estética dramática que busca criar a ilusão da personagem, mas também do Auto de Angicos, que apesar da transposição do mito para a realidade atual efetuada por Barbosa, ainda apresenta uma forte característica dramática que pode ser notada através da sua estrutura dialógica. O trabalho de Haddad vai ser tratar da supressão da ilusão dramática e dirigir os atores no que diz respeito à uma encenação mais épica, numa estratégia de encenação que podemos chamar de pós-dramática, que não mais permite que o ator incorpore a personagem, ao mesmo tempo que denúncia a forma dramática como uma dramaturgia a serviço da ideologia dominante.
Uma das estratégias utilizadas por Haddad para romper com essa perspectiva dramática do hipotexto Auto de Angicos está em evitar o excesso de realismo, não caracterizando as personagens com roupas de cangaceiro ou com características físicas de Maria Bonita e Lampião:

Quem o visse, gelava. Mais ainda, depois da morte do irmão Antonio, quando abandonou os cabelos ao crescimento e as unhas se lhe formaram garras recurvas, aduncando-se, como bicos numerosos, de aves esfaimadas. (MACEDO, 1975, p.15)

Assim, de acordo com Haddad, na sua produção, Virgolino é encenado por Marcos Palmeira – que está longe de ter um biótipo nordestino –, sem puxar pela perna e sem o problema do olho vazado, enquanto o papel de Maria Déa, ao invés de ser representado por uma mulher tipicamente nordestina, foi entregue a Adriana Esteves, uma “menina loirinha suburbana[8]”.A releitura do mito de Lampião efetuada por Haddad desvela o véu da ilusão proporcionado pelo cinema. Além disso, se conjugam linguagens cênicas em relação de intermidialidade, tais como a música popular, o gestual (junto com a iluminação e o cenário), a arte ritualística da abertura e do final da peça. Na abertura do espetáculo, dois contra-regras desempacotam o cenário enquanto cantam Acorda Maria Bonita, e chamam o público para cantar e acompanhar com palmas a música. Na parte final da encenação, Virgolino e Maria, depois de mortos, sobem para duas posições que se encontram num plano superior ao palco e colocam as suas vestes de cangaceiro. Depois descem de novo para o palco, dando as costas um para o outro, numa clara relação de intermidialidade com os bonecos de barro criados pelo mestre Vitalino, que está presente no filme Vitalino/Lampião (1969) de Geraldo Sarno.
Haddad afirma ainda em sua entrevista, que evitou a todo custo o “diálogo realista”, buscando exprimir melhor a densidade de sentimentos que move os personagens e, sobretudo, valorizar a corpo, o movimento livre dos atores sem marcações, assim como no seu teatro de rua. “Seja num ambiente fechado ou de rua, o espetáculo tem que proporcionar uma verdade para cada um dos espectadores que deve ser apresentada nua e crua, e não colocada como uma essência que poucos poderão atingir”.
Virgolino evita a perspectiva do Nordestern, que apresenta em sua configuração uma definição extremada entre o bom e o ruim, e que a partir da constatação do caráter multifacetado do homem conceituado por Hall, ficou sem sentido. Essa relação dicotômica entre o bem e o mal, foi abordada pelo filosofo alemão Friedrich Nietzsche em Para além do bem e mal, que ao examinar civilizações de épocas passadas, depreendeu certos traços que são justamente distintos, que culminam em dois tipos fundamentais de moral, mas que não são mutuamente exclusivas, pois se mesclam até mesmo no interior de uma única alma humana:
Acrescento desde logo que, em todas as civilizações superiores e mais mistas, entram também em cena ensaios de mediação entre ambas as morais, e ainda mais freqüentemente a mescla de ambas e o recíproco mal-entendido, e até mesmo, às vezes, seu duro “lado a lado” – até no mesmo homem, no interior de uma única alma. (NIETZSCHE, 1981, p. 215)

Para Nietzsche, o escravo, o ressentido, o fraco, concebe primeiro a idéia de “mau”, com que designa os nobres, os mais fortes do que ele – e então, a partir dessa idéia, conclui, através da antítese, a concepção de “bom”, que se atribui a si mesmo. O forte, por sua vez, concebe espontaneamente o principio “bom” a partir de si mesmo e só depois cria a idéia de “ruim” como “uma pálida imagem-contraste”. Do ponto de vista do forte, “ruim” é apenas uma criação secundária, enquanto para o fraco “mau” é a criação primeira, o ato fundador de sua moral.
Assim, podemos dividir a abordagem do tema Lampião a partir de dois grandes grupos: A partir da impossibilidade da convivência entre o bem e o mau, como podemos perceber em Lampião; ou conforme Nietzsche, como uma questão perspectiva, que é mostrada em Virgolino. No espetáculo de Haddad, esse novo circuito de sentido é o próprio contexto teatral contemporâneo, que afrouxa as amarras do teatro dramático de sentido único, um teatro que institui determinadas verdades que não possibilitam qualquer tipo de reflexão e que não proporciona as mínimas condições e perspectivas de mudança.
O público de Virgolino, ao deixar o teatro, leva em si, uma experiência única, e percebe que o cangaceiro tem o seu lado Virgolino, como também tem o lado Lampião, e muitos outros e que o futuro é uma grande rede de possibilidades.

Referências Bibliográficas
BARBOSA, Eduardo. Lampião: rei do cangaço. Rio de janeiro: Edições de ouro, s/d.
BARBOSA, Marcos. Auto de Angicos. Texto não publicado. s/d.
BARROS, Luitgarde O. C. Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
BERNARDET, Lucila R. e RAMALHO JUNIOR, Francisco. Cangaço: o nordestern no cinema brasileiro. Brasilia: Avathar, 2005.
CARVALHO, Rodrigues de. Lampião e a sociologia do cangaço. Rio de Janeiro: Editora do livro, s/d.
CLÜVER, Claus. Estudos Interartes: Introdução crítica. Tradução do inglês de
Yung Jung Im e Claus Clüver. In: BUESCU, Helena Carvalhão; DUARTE, João
Ferreira; GUSMÃO, Manuel. Floresta encantada: novos caminhos da literatura
comparada. Lisboa: Dom Quixote, 2001.
COIMBRA, Carlos. Lampião, o rei do sertão. São Paulo: Cinearte Produções Cinematográficas, 1962.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. de Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Letras, 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Thomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de janeiro: DPA Editora, 2004.
IACOCCA, Liliana e CAMPOS, Rosinha. Lampião e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço. São Paulo: Ática, 2005.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
MACEDO, Nertan. Lampião: Capitão Virgulino Ferreira. Rio de Janeiro: Renes, 1975.
NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. São Paulo: Hemus, 1981.
SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama: Escritas dramáticas contemporâneas. Trad. de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Trad. de Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.

[1] Luiz Zanotti
E-mail: luizzanotti@terra.com.br
[2] Que chamaremos simplesmente de Lampião no decorrer dessa análise.
[3] Que chamaremos simplesmente de Virgolino no decorrer dessa análise.
[4] O neologismo Nordestern é uma criação do pesquisador Salvyano Cavalcanti de Paiva (CAETANO, 2005, p. 11)
[5] O cangaceiro, A lei do Sertão, A morte comanda o cangaço, Três cabras de Lampião, Entre o amor e o cangaço (BERNARDET e RAMALHO, 2005, p. 34).
[6] Transcrito da gravação em vídeo do espetáculo gentilmente cedido por Paula Salles da Primeira Página produções culturais.

[7] Entrevista com o diretor Amir Haddad realizada em 1º de junho de 2008.
[8] Conforme Haddad em sua entrevista.

POESIAZINHAS DO ZANOTTI

Dar a ler I

O homem viaja
Na busca de se agarrar a alguma coisa
No mundo busca pedras
Para fazer sua base, suas vigas
Vagas vigas
Que embriagam e destroem
Que fazem o homem mergulhar
Na profundidade da sua natureza
Virar viga, retirar a máscara.
O amor bem que salvaria a sua alma
Qualquer amor
Seja de dEUS ou de uma prostituta
O que dá no mesmo
E nesta profunda escuridão
Nós plasmados em uma só sombra
Na sombra de uma viga
Único porto seguro do amanhã
Na sombra da viga
A imagem de um mundo que é diferente







Dar a ler II


A neblina esfumaceando o lugar,
Pessoas atravessam a rua, apressadas,
Pra que?
O tempo não existe.
Elas chegam aos borbotões,
vem do passado,
vestidas em suas estolas e cartolas.
O barulho das rodas
Das carruagens no cascalho
-Posso te ajudar?
Frase perdida num tempo
O velho cego continua andando
Com a sua bengala
O som da batidas dos atabaques
Filhos de Xangô
A mulher vestida de preto canta
Uma velha canção de amor e de mar

Lá vem o mar lavar minha alma sofrida
Lá vem o mar lavar minha alma sofrida
Chega de amar,chegar de azar,
Chega de pensar em coisas tão banais.


Dionisíaco


Vou engordando, ganhando quilos,
o rosto cada vez mais redondo.
A loucura proporcionada pela embriagues
me tira da depressão
A loucura que acompanha
a cada pensamento enviesado
As ninfetas correm nas noites alimentadas
pela carne fresca animal
As bacantes neste delírio infrêmito,
nesta cruel certeza de estar perto.
Da musica que ousei tocar,
retirada das notas passarinhos nos arames farpados
das cercas que nada cercam na Fazendinha é o caminho.
Sexo, drogas e roqueerrou
Bacantes, loucura e musica dionisíaca
O triunvirato, as três pontas do tridente de Zeus
Todo mundo tem um pouco de gênio e de louco
Mas somente o gênio tem de louco cem por cento.


Res cogitas, res extensas e res pirar.


Hoje olhando o para o colégio onde nasci
Lembrei por um momento que sou paulista
Educado no estado, na cidade de São Paulo
No hospital, no bairro,no Jardim de São Paulo
Aqui vivi grande parte da minha vida
Respirei paulista

Ai,lembrei do mestre das chaves de Canavieiras
E seus esteriotipos
Tipo paulista
Tipo baiano
Tipo carioca
Sou avesso a esterioversos
Machuquei

Então rodei ainda mais meu Brasil
Transpirei o suor
Dos lençois maranhenses
Respirei o aroma baiano
Senti o cheiro do Mato
Todos os matos
O ácido do suor nordestino
O sabor amargo do chimarrão
E o gosto acre
Sempre em nossas bocas
Aspirei um Brasil
Sem fome
Respirei brasileiro


Guardanapo de papel


É sempre assim
Após algumas horas
Depois da devastação
e da Brahma
A vida sendo escrita
O Poeta dos guardanapos
de papel sobre o balcão
O balcão do Bar
Pena que hoje a caneta
Não possa ser tamanha
Coadjuvante menor
Incompatibilidade com o meu amigo maior
De todas as horas
Sempre te encontro
O guardanapo de papel
Aí então vem uma cascata
emoções rolando
A vontade de transbordá-las
Bordando palavras num papel.
Como?
Eu estou no meio de Nova York
no meio da noite
no meio da rua
A meio pau
As luzes de um bar
A salvação
Dentro de mais um pouco
Só mais um pouco
Me empresta a caneta,
Could you lend me your pen
Pequenos pedaços de realidade
Fragmentos de poesia
Sendo desenhados em pedaços
Pedaços de isxis cm
vinte por trinta
trinta por vinte
No meio da mais perfeitas idéias
Pulo de papel
Passo para um novo mundo
Passo para o mundo as minhas imagens
Imagem perdida
Praia do Boqueirão
De tantas vezes
Salto para praia
Procura imensa do mar
Algo bate forte dentro
Esbanja emoção
Explode palavras
Preciso por tudo isto pra fora
É como a droga para os viciados
Querido guardanapo de papel
Razão de ter lembrado amanhã
Razão de poder retratar loucuras
Minhas
E de outros
O brilho prateado do balcão
As pessoas me acham
É interessante notar que a curiosidade está
Viva em cada um de nós
Mas ninguém pode entender
Alguém que escreve em letras
Grandes letras
Num guardanapo de papel
Mesmo que hoje seja quarta-feira
Mesmo que isto seja Manaus
Mesmo que a minha vida se desapareça
Rapidamente
Sugada pelo papel
Mesmo que a minha vida
Vida na quarta-feira
Vida hoje em Manaus
Viva crianças crescendo
Rapidamente
Eu sugado pela vida
Obrigado por um
Guardanapo de papel Nietzschiana levantai o vosso coração, alto, mais alto e não esqueças das pernas você que é uma boa bailarina erguei também sua cabeça e vá dançar esta musica que aniquila mas que também nos integra numa delirante embriaguez coloca sobre ela esta coroa de quem ri esta coroa de grinaldas de rosa declare o seu riso santo Suzana, a dançarina, a leve acene de onde estiver com as suas asas, estarei lá pronto para observar o seu voar e não esqueça de acenar aos pássaros na sua preparação deste vôo noturno e leve aquela dançarina que esta indo no encontro da verdade não uma verdade impaciente e incondicional porque existem varias verdade a verdade ama os saltos e piruetas é como um acrobata encima de uma tenue pauta musical e esta coroa que agora pões sobre a sua cabeça e que será o seu equilíbrio nesta passagem sobre o abismo é a mesma coroa que nos faz sorrir e te faz voar para você eu fiz esta coroa que vai te proteger da queda para você eu fui buscá-la da mais escura profundidade do meu ser e dai, eu declarei o seu riso santo e notei que você, do alto do seu vôo noturno aprendeu a sorrir, a dançar e a voar
CHAVE

Quando eu te encontrei no meu bolso
Eu procurava outra chave
E sem perceber eu girei
A chave pra uma outra viagem
Meu corpo na eterna vadiagem
Criou asas e se transformou numa arara
Esculpida pelo dodô das codornas

E como agora eu sou uma arara
De madeira do litoral norte
Abandonei meus velhos problemas
E parti pra um céu ainda azul
Lá eu fiz mil amizades, e o mundo se abriu
Nasceram novas estrelas, a maré subiu
E eu me tornei artesão.

Com a mesma fala que esculpi sua imagem
Tive mil organismos que criaram novas araras
Planando nas asas da imaginação
Que explodindo o mundo, num arco-íris de imagens
Na porta da nossa casa


Neste vôo sem rumo, me lembrei que sou você
E que os rabiscos que riscam o quadro negro
Trazem o passado ao presente
Me empurram do útero ao futuro,
Envelheço e me lembro quando fiz 39
Quando viajei feito arara
Na terra do sempre feliz

Poetas das ruas
(em parceria com W.Haacki)

Eu sou o poeta das ruas
Despercebido estou no vão
Das coxas das mulheres paranaenses
Eu sou o bêbado dos bares
Percebido, incômodo
Sou o esperma da sua boca
Em forma de canção
Sou o sorriso sem dentes
Daquelas gargalhadas
Dos que não sabem por que riem
E mesmo queeu fosse alguma coisa
A mais do que um simples número
Meu jazigo seria pra sempre
O meu melhor amigo
Assim, o saber tudo
É saber nada
É estar perdido e só
Por isso respiro o seu suor
Masco a sua raiva no café da manhã
Cuspo a inveja
A barata tonta que foge do chinelo
Beijo sim
Não para matar a fome
Só desejo
Satisfazer o meu fino paladar
Quero uma pele carnuda e macia
Mas quero também veias, dor e amor
Vomito sangue
Parei de comer rosas
Hoje só como espinhos

Cadavez

No escuro deste quarto
Eu tenho certeza
Que a pereira
Em que te vi nascer
Está morta
Você que vi nascer flor
E se transformou em fruto
Que eu vi ser em quarto,
Por outro, partida.
Que eu vi o caule ser arrancado
Com os dentes
Formando enorme ferida
E cada vez mais
Neste quarto mal cheiroso
Eu busco a resposta
Que você quando fruto
Não me deu
Eu que te vi no berço da morte
Que te vi criar e recriar os astros
Com seus dedos finos e longos
Dedos de pianista
Cada vez mais
Penso menos
Nestes lençóis dos desejos
Cada vez mais
Penso menos
Nestes lençóis dos desejos
Cada vez menos
Beijo o seu retrato
Durmo com as sementes
Esperando novos frutos


O coração


Ah.Nessa mesa
O que era firme se desmancha
Neste copo
Há na certeza
Uma incerteza muito grande
E o remorso
Porque palavras e rimas
A gente esquece num instante
Então pra que vou me enganar
O coração é aquilo
Que a face mostra
Mesmo no escuro do bar
Eu posso olhar
O coração

Há nesta noite
Muito mais estrelas
Que poesia
Quem diria
No firmamento
Um novo momento
De tristeza e agonia
Porque canções e juras
Não correm contra a maré
Então pra que vou navegar
O coração é aquilo
Que a face mostra
Mesmo no escuro do bar
Eu posso olhar

Na sua mesa tão vazia
De amigos e esperança
Perdido, feito criança
Abandonada
Num canto sozinha
Atravesso a madrugada
Na busca do seu olhar

Viagens e Espantalhos

Ficção não uso acento viagens
Fricção perpetuo a possibilidade vadiagens
Aflição de vôo viadagens
Lição circunflexo estradas
Mera realidade vou ao infinito estragas
Ou pesadelo mentira tragas
Pessoas agudo beberagem
As pessoas sou a faca sacanagem
Dirigem que fere homenagem
O resto e que corta a carne homem oco
É imaginação trema espantador
Realidade a vida se escoa espantamor
Ou mero desespero pelo ralo espantalho

Bitz e Amendoins

E nesta cada vez mais estranha vida
Nessa velocidade alucinante que a vida passa
A uma velocidade de quinze ou dezoito quiloherts
Tento ter paciência para ouvir,
Paciência para contar a última aventura
Com pelo menos mais do que cinco palavras
Objetividade?
Peso da idade?
E tudo que penso?
A idade e objetividade?
As pequenas coisas me irritam
Me fecho
Feitostra
Ostracismo
Cismo
Catecismo
O amor hoje em dia
Não troca mais que três palavras
Mentira,
Às vezes troca quatro
Ou cai de quatro
O viaduto da Sé não me presta mais
Bebo amendoins e esqueço todas as palavras

É possível que essa velocidade
Me leve a um novo horizonte
Lou Reed
Lou Marilyn
Lou Paquiderme
Lou Space
Lou Lusantos
Hey Cure
Alo Cura
Aii Curra
Lou
Cura Low
Low
Curae nesta cada vez mais estranha vida
Nessa velocidade alucinante........
Todo o arremesso dos planetas
Foi particionado pelos povos da floresta
Floresta de São Paulo
América
Sabe, a do sul
Naquele tal de planeta chamado Brasil
Todo o arremedo de cultura
Que ficou do lado de cá do hemisfério
Lembra suor, calipso (que hoje chamam lambada)
Estrela desesperada procurando o amendoim
Todo o amendoim que sobrou no hemisfério
Não pode ser mais que
Um punhado de quatro sementes
Que brilham sem terem a certeza
De terem nascido.
Bom dia senhor sol
Veja as minhas raízes
Cada vez mais caudalosas
Se encontrar uma terra
Que é de todos e não é de ninguém
Todo o dia passou sob a cobiça
Ninguém soube entender a velocidade
Dos pensamentos..........Faíscas...........
...........curto............circuito.................
.....................curtocircuito...................
BZZZZZZZZZZZZZZ.
O vento volta de novo
E por mais que eu queira
Esquecer essa nova melodia
Esse novo amor
Tudo gira como um redemoinho
Trazendo lembranças
Que eu gostaria de ter apagado
Mas hoje o tempo me acorrentou
E estou sozinho
BZZZZZZZZZZZZZZ
A inocência de nossos sonhos se perdeu
Aonde estou eu
Aonde está você
Mas o que posso dizer é
Que sempre um novo dia nascerá
E pra nós será sempre
A força de uma nova vida
Correndo um novo sangue
Ou um velho
Sabe, aquele um
Nós ficaremos velhos
Não me importa que o amor
Se transforme numa sublime troca
De experiências a respeito de úlceras
E estomatites
O amor é tão lindo e sobreviverá
Posso ouvir a sua ânsia
Mesmo no silêncio
Ninguém te amará como eu
Nem na morte
Os acordes da minha serenata
Acorda amor
É amanhã
E eu vou inventar novas histórias
Pra te manter acordada
Sabe, existe um menestrel
Um caminho pro céu
Uma lua de mel
Me dá licença pra esta
última dança?????
????????????????????????
Amendoins, palavras e cerveja
Estou aqui
Um novo fantasma
Nem melhor, nem pior que os antigos
Levo no peito uma palavra chamada aaaaaaaa
Aaaaaaaaallllllllllllllllmmmmmmmmmmaaaaaaaaaaaaa
Estou feliz nesta grande gaiola
Chamada vida
Esperando poder alçar um grande vôo
O maior dentro das notas maiores
Pensando que tudo não passa de
Um grande pesadelo ou sonho
O homem se esqueceu de um velho tempo
Que tínhamos tempo de esperar
Passar o vento
E escutar o seu som
Soprando na janela
E a idéia de uma morte jovem
Livre e sem princípios
Sons alienígenas
Me encontro pensando
Em pleno campo
Faunos andam tocando suas flautas
Não me conhecem, eu não os conheço
Mas somos todos irmãos
Neste frio que nos torna estranhos
Palavra estrada............estranho.................
.................palavra...........palavra.................
Estou em silêncio a aguardar porque este pranto
Minha alma não voa
Esperarei muito mais
Sabendo que essa ânsia tem um nome
FELICIDADE
E quem não sabe não pode dizer
A noite nos fará feliz
Não poderei falar da minha
Da nossa felicidade
O silêncio nos levará
Para fora dessa gaiola
Voe
Não se esqueça que temos asas
Somos doces
E o silêncio nos tornará fortes
E esconderá
O silêncio
Nesseimensosilêncio
Me perco em palavras
Ou falta delas
Nesseimensosilêncio
Dou adeus aos mortos.


Brasil Um Pensamento Tardio

As queropitas pedras turmalinas do pensamento
São botos, orgasmos no rio, ponteiros do tempo
São via Láctea e intestinos
Jacarés, televisão e privadas
Quiromancia viagem
quisto formado na palma da mão
Pimentas corações solitários, o arrepio
Suavemente ela desce a calcinha
Subitamente o chão fugiu, a maré encheu
Quixote, quinhão, minério
Os raios de sol num grito breve e seco
A vida por um fio
Prostituta, prostituído, Brasil

Magenta, cristalina placenta, cordão umbilical
Fumaça, janelas e o aprisionamento, grades
Cadáver sem nome, paulicéia desvairada
Movimento, paixão e ritmo
Marisco impregnado em seu ser
Pedra, lápide sepulcral
Furúnculo, iceberg, pássaros
Milhões de luzes em teus seios
Malabar, malandragem e malária
Espírito corpo e luz
Transparência, latir
Mal educado Brasil

Razão, ravióli, ave de rapina
Me tiraste do meu leito
Dama das luvas negras
Viúva negra, aranha
Motéis e aves da madrugada
Tabefe, opulência e Tabatinga
Mulheres, crianças, emergindo da noite
Xoxótas imberbes, bêbados maduros
Camisetas, cooper e propagandas
Reflexões na hora do poente, Brasília,
Abrigo dos lobos, mergulho no vazio
Tão podre e corrupto Brasil

Parcimônia, uísque e bons vizinhos
Ai cinco, nação feliz e pasquim
Luxo e ostentação, mero pastelão
Todo o Brasil se droga, ora droga
Agito, misundertanding, diploma
Estado de direito, experiência alucinógena
Arquipélago de Santa Cruz
Tão iguais, tão diferentes
Do rio que corre sobre a minha cabeça
Não atravessa as demais
Cadeiras na varanda, a lua surgiu
Saudade desse velho Brasil.

Central Luzes

Me esqueci, me apaguei
As milhões de luzes abaixo de mim
Transbordando o coração
Um avião passou sobre nossas cabeças
Meu poema tomou carona
E aí milhões de estrelinhas
Vieram sobre mim
Caído, sem sentidos
Mudando de amores
Sem perceber o sentido do céu
Do seu amor
Dei de encontrar a sorte
E ela me encontrou
Num momento difícil
Buraco negro da existência
Este é o som de quando eu era menino
E o povo das casinhas
Que são milhões de estrelas
Estão quebrados
Acreditam na verdade
E acham minha poesia mentira.



Pelos metrôs de Paris.

O som do violão irradiava
por todo o túnel do metrô,
o som da gaita,
me aproxima.
Alguém toca no
buraco do metrô
tem um cartaz e pede moedas.
Passo a passo
Solitário
Uma forte atração me fez voltar.
Tento me comunicar.
Qual língua?
A língua dos loucos
Dos perdidos nos metrôs do mundo.
Toca uma música pra mim!
Juntos pegamos o metrô
Junto vamos pra Bastille,
uma cerveja e um
drinque doce tipo soda com coca-cola,
um adeus na noite,
eu solitário pelas ruas de Bastille
ele pode voltar a tocar,
está sozinho,
ninguém o impede.

Tarde de Domingo em Buenos Sampa

Primeira imagem,
James Dean sentado na poltrona
Assistindo aquela reportagem sobre os “dizizis” do Fantástico
Viva jovem morra jovem,
seja um glorioso defunto
Calça Lee, blusão de couro,
o que era beat, virou fashion
O articulista não resiste a tentação de dizer que ele era
Homossexual, ou ao menos bissexual,
e quem sabe trisexual
Lábios agreste, beijos psicodélicos,
olhos sombreados e esperma atômico,
porra como é difícil adjetivar
No último quadro quando entrevistam sua professora primária,
ela diz:
- Vocês tem que lembrar de que hoje ele teria uma miopia avançada

No espaço de tempo reservado a nós mortais,
o picadeiro cheio de luzes estroboscópicas,
um anjo passa sobre as nossas cabeças
Asas enormes, Ícaro em sua modernidade de turbinas
Bocejamos com o velho de truque de magia,
da cartola e do varal
Sentado a frente de uma estação de trabalho,
invento um grande país, que pinto em todas as cores
verde, laranja, cinza, azul argenta, vermelho
Traço uma grande ferrovia e embarco no primeiro trem
Está cheio de imigrantes que vão povoar esses país
Lá não existiria nada de corrupção,
viveremos em plenitude cósmica
Sonho, e vejo um país índio

Chora e grita aquela guitarra perdida no underground
conta todas as mentiras, se confessa, e volta a pecar de novo
Diz das relações entre o bem e o mal, sorri
Sobe a rampa do castelo, se entrega e se corrompe
Trepa com todas as mulheres que são espelhos
São orelhas com brincos de cristal, pescoço e clímax
A beleza suspensa na ponta da agulha que vai ferir sua pele
fazendo circular pesadelos, viagens e loucuras
Dependência? E o outro lado da independência.
Aquela libertinagem rondando o planalto
Vidro que raspa as cordas vocais, e às vezes faz aborto

Quarta capa de periódico, abro e vomito,
cheiro de sepultura.
Tem cheiro de Paulo Francis, continuidade e brasilcadura
Fala de coisas que não entendo e não tenho saco
Noviorque, estadusnidus e pirustroica
Colônia de vermes balançando a cabeça
estão numa árvore genealógica de puder, poder e de uma deferente otoridade
Não clamo, reclamo, não oriento, me ausento, sou antídoto
esgotado nesse mundo de escorpiões.

A magia do primeiro amor homo ou heterossexual não tem
diferença
Círculos mostram o caminho pra frente e pra traz
Fazendo-nos retornar a primeira página
Num eterno retorno nietzschiano.


Atlanta

Peguei a caneta e caminhei até o sofá
Estava naquele buraco sujo do metrô
Rato gente rato
O grito e o som dos freaks nos trilhos
Nas galerias os gritos e os sons
E eu tive um sonho tão longo
Transmitido por fac simile
Eu lendo em visão calidoscópica
Com aqueles óculos de lente verde azul
Senti-me o herói
Num filme que nunca acontece
Meus olhos, hoje são a câmera
Imergindo, mergulhando nesse louco mundo
Take one – nariz/do americano/de cabelo branco/fungando
Pensei nas camisetas que não comprei
Tudo era um resto de conversa sobre regardé
Jack Logan Jack
O sapato sobrando na sala
As orquídeas soprando o som
Discordei do arco íris
Raspei todas as teclas do teclado
O amor via modem
E sobram mil palavras
E toda assombração
Pra falar
Falei arrogante
Eu com a visão calidoscópica
Num filme que nunca escondi
Os olhos são a cratera
O coração, a barriga
Nesse imenso louco mundo
Então close no corte do seu nariz
Sou americano, cabelo branco
E neste evento, tão cansado
Estou sentado
Todos os copos em cima da mesa
E as pessoas não se cansam de falar
E não dizem nada pra ninguém
O carniceiro tira pedaços de carne
São os pratos que dão vida ao lugar
E quanto mais falam, mais vida
E a obsessão é o abajur
Os mortos já estavam deitados
E os tigres de Bengala
Quando, ouvi chegar alguém do safári
O bolso serve pra carregar a carteira
O coração a caneta
A palavra o ruído
As flores mais algumas palavras
Vivi aqui como sertanejo
Não de palavrão, mas de fé
Nada mais resta do que o vermelho que carrego comigo




Bruxas meninas


Andam descalças na floresta
No meio da noite
Reúnem-se em noite de lua cheia
Em volta do circulo
Tantrico
Gritam, estão histéricas
Formam uma irmandade de
mãos dadas.

O que me trouxeram
Diz a velha mulher
Pelos de uma barba
Um recorte do colarinho
A fogueira crepita
Ao receber estranhas
Substancias

Uma ave negra
Voa perdida pela penumbra
Entoam unissono
Estranhas canções
Ficam nuas ao luar
Seios adolescentes
Balançam
Dançam
Alucinam
Depois exaustas
Dormem como anjos
Sem nenhuma peça de roupa

O gosto ácido do sangue
em nossas bocas
O olhar enfeitiçado e distante
Povoam as nossas mentes
Nós, pobres diabos
Brincadeira de meninas
Ou maldade de bruxas?
Simplesmente mulheres


Normais Neste Pesadelo Natural(Num Bar da Avenida SãoJoão)
O homem de botas pretas
E uniforme verde
Ronda o posto espalhando água
Seu esguicho é violento
E molha todos os sentidos
Daqui da mesa azul marinho toalha
Vejo os copos do vinho
da água com gás
do Contreau congelado
O freio do ônibus arrebenta numa nota aguda
Os comensais da mesa vizinha
Transformam-se em gnomos de chapéu azul
O homem sem chapéu
E de camisa listrada
Apercebeu-se da chegada dela
Sua virilidade se põe a prova
Orgasmos em ondas de rádio
Daqui, de dentro da minha mala preta
Vejo os documentos proibidos
adulterados
falsificados
O ruído da explosão do motor num canto baixo
Os comensais da mesa vizinha
Normais neste pesadelo natural

Paratí

Te dou esta canção,
Assim, arrítmica
Antimétrica
Te dou esta canção
Sabendo, sofrendo
Sonhando
Te dou esta canção
Sabendo que
Continuará à noite
Tudo continuará
O meu amor também continua
Solto por entre as ruas
O fascínio das ruas
O Francisco das ruas
O óbvio chegando nos ouvidos
Te dou esta canção
Escondendo as flores
Pelas ruas que passei
Te dou esta canção
Esperando a esperança
Sabendo que é possível
Te dou esta canção
Sonhando com os dias
Sem temor, com amigos
Te dou esta canção
Apesar de que
A minha solidão continua
Fechada entre paredes, quatro
O caminho das estradas
Hermínio das estradas,
Fernando
Apóio a cabeça nos cotovelos
Te dou esta canção
A você minha mulher
Eu perdido nos nossos horizontes
Te dou esta canção
Recordando todos os nossos momentos
A loucura entre as pedras da Barreira
Te dou esta canção
Sabendo de toda minha covardia
É melhor lembrar os meus quadros
A minha arte continua
Fechada num quarto, quadro
Transborda o coração
Te dou esta canção
Assinaturas lembram o violão
Te dou esta canção
Perdido cada vez mais
Desaparecendo
Gostaria de ver de novo
Nascer de novo
Te dou esta canção

Não sei se me perdi
Não sei, talvez
Alguém sabe, me informe
Por favor
O estado continua
É lindo te ver
É bom te sentir, meu filho
Loucura sobre o mundo
Talvez a última chance
Talvez a última
De poder dizer
Amor


São Paulo

O espectro solar
Dos raios cósmicos irá dizer
A vida continua a mesma
Up & Down
Vou andando, me escondendo
Procurando parecer normal
A vida nesta big Town

Parei no farol vermelho
No radio tocava um velho Rock & Roll
No relógio deu meia noite
Ai, eu me transformei num vampiro

O complexo de Édipo
Não posso evitar
E brinco com estricnina
Amor letal
Bocas, línguas.
Dentes pra fora
Vou disparando amor
Na solidão capital

E os seus lábios são vermelhos
Seus olhos me hipnotizam
E eu me perdi nos seus braços
Só pra dizer que é tudo mentira



A Luz da Vela


O medo está dentro de você
E você ainda não viu
Treme como a luz da vela
A mesa com os farelos de pão
O balançar da toalha no varal
A dicotomia Pai e Filho
E Espírito Santo e Amém
A favela no meio de Alfaville
A alfavela adentrando a vida
Subi duzentos e quarenta degraus
E no meio da luz descobri
Sua fotografia
Porra. Onde estão meus poemas
Estes 250 milhões de neurônios
Queimados
A tampa da panela tampa
Tampax
Príncipe Charles, chaleira
Que alguém me mate
Antes que alguém me suicide
Que alguém me ame
Antes que eu desista do amor
Que alguém me adore
E ofereça sacrifícios humanos
(não gosto de carne de carneiro)

O medo se transformou em paura
Falei para não ver Globo terror
Filho da puta é via láctea
Tá bom, vou tentar melhorar o nível
Luz de vela a sacanear
Gostaria de falar de cavalos
Mas entrei num poema de luz
Porra, que fala sobre a luz da vela
Daí ela queimou sua parafina
Desceram gotas gozo quinhentas
Sua pornografia

A lente do meu óculos revela
Muito mais do que posso ver
As chamas que dançam numa vela
Sal Cisne, congestão e Alka Seltzer
Da primeira vez fui até Cuba
Depois o cú bateu
Pois que a saudade dure
Antes que ela passe
Pois que o tesão perdure
Antes que encontre o gozo
Pois que conquistem a Terra
Antes de conquistar a Lua

Pois alguém diga:
Pois
Antes que vire
Língua morta
Que se extingue
Como luz da vela

Ao Historiador Raimundo Girão


Noites de pirataria numa nau sem rumo
O cearense que não gosta de carne de sol e nem de forró
O suor brotando por todos os
Poros e evaporando como a música
Colher de pau, projeto futuro
A impaciência com a demora
Pela germinação do próximo verso
A mesma estória
A mesma escória
A mesma rima

Dias de gravata na noite sol de Salvador
Prostitutas no Pelourinho
Raimundos tocando
Raimundos pescando
Parafraseando Raimundos
Raimundos no mundo
Após o 13º uísque com água de cocô
A madrugada começa a girar
Travestis na noite da Barra
Bumbuns maravilhosos
Escondem gebas
Nos motéis ou vivos do amanhã

Preencher todos espaços com palavras
O silêncio após o iniciar da paquera
Após as perguntas para-normais
Qual é seu nome, signo e onde mora
Ou o silêncio após a batalha sexual
Não, entre os sexos
Aquela em que o vitorioso é gozo
Aquela em que não existe homem e mulher
Só gozo

E assim passam os dias
Ameaças veladas
Filmes velados
Cartas marcadas
E assim a noite vem

Beijos afoitos
Milhares de açoites
Estupros inevitáveis
E daí a madrugada no seu
Eterno exercício de manter
Aceso os amores,
De causar temor aos devedores e insônia
A nós todos.






Estação da Luz

Estação da luz, vida e morte
Paisagens pela janela do carro
Churrasqueto
Baby beef
Bisteca
Filé mignon
Contra filé
Lombo na brasa
Cupim com farofa
Frango na brasa
Mini contra
Espeto a gaúcha
O trem passou, um adeus na janela
Espeto à brasileira
Espeto de filé
Pintado na brasa
Lingüiça
Último trago, vou te esperar
De repente a vida passa rápido
Do verde para o amarelo
Milhões de buzinas, vou te esperar
Pessoas zunindo na minha mente
Milhões de abelhas, vou te esperar


O vermelho
Banana split
Sunday
Colegial
Taça simples
Frapê
Estou olhando o teto girar um carrossel
Eslaides projetados pela memória
Passa, passa, passa, passado
Passa, passa, pássaro
Passa, pressa
O amanhecer está aí, relógio da estação
Creme de barbear, barbas na pia
Café da manhã, desço pro bar
Vitamina mixta
Abacate
Suco
Pão na chapa, vinte e quatro horas no ar
Michê confunde com trabalho
A chuva torrencial, milhares de almas
Lutando contra a dor, pela luz
Te vi tantas vezes, te reconheço
Coração único dos paulistanos
Batendo
“Como foi o trabalho meu amor”

DICE

Foi que ela me disse
No quarto escuro
Os seus seios eram portentosos
Belas nádegas
A luz vermelha na garagem
Ouço os gemidos soltos na noite
Um gato miando
Não vá embora
Foi o que DICE me disse
Na noite fria de Sofia

Guaratuba

Uma coisa eu vou te dizer
Vi gaivota a voar
Senti o verde da vida
De papo pro ar
O morro lá tem vez
O cristo que vive lá
O azul desceu do céu
Pra viver no mar
De Guaratuba

Crise de consciência
Vontade de trabalhar
Fiquei quietinho num canto
E deixei a vontade passar

Um sabia me falou
Malandro se liga no mar
Forte é aquele que pia
Onde ninguém quer piar
Na sombra da palmeira
Que coco não da
Misturei bossa e pagode
Só pra te agradar
Em Guaratuba

Não é preciso dinheiro
E nem muita roupa
É só estender a esteira
E lagartixar

Atravessando a baia
Lembrei da outra Bahia
Do poeta Jorge Amado
Velho capitão de areia
Sentindo a brisa do mar
Seu mar

Em noite de lua cheia
Quem olhar pro firmamento
Vai enxergar, por um momento
Uma nova estrela

Destino Xerox III
Tive medo do medo
E por isso escolhi
O caminho direto de contato com Deus
Atravessei outra vez o calvário
Não sou Jesus, nem salvador
As luzes brilham na taberna
E são tão opacas no seu templo
Contrario sempre seus caminhos
Me perco
Me ajude a atravessar esse rio
Cadê a canoa
Uma casca de amendoim
Num oceano de aço
O cérebro é uma bomba
No meio dum edifício
Desarmem, desarmem
Descasquem
Como a um amendoim
Triture-o

Destino Xerox II
A imaginação imagina!
Marginal quadriculada em xadrez
Trinta segundos para a objetiva
Puxaram o nosso tapete

Bagdá, 1001 noites
São Paulo, 101 noites
Los Angeles, 11 noites
Curitiba, 1 noite só

Te reconheço sempre
Mesmo entre as cascas de laranja
És forte para quebrar os amendoins
E é tão doce pra oferecer os cabelos

Endoidei, me perdi, subi até o sótão
E proclamei
Todos tem direito de ouvir o som
Que vem pelas frestas
Tudo que copiei
Fiz por admiração

Destino Xerox I

O câmbio cambia a direção
Carimbo automóvel
Revelamos o filme da mente
A cada momento
E a cada momento
Se encontramos nas fitas
Da loteria esportiva

A caixa registradora
Trai o relatório XY
Fotografamos o boliviano
Cai mais um número
Marcamos na nossa cartela
Emoção recolhida

O estômago já não digere
Os amendoins na sua orelha
Olhos brancos que procuram o tigre
Pele negra perdida África
No prato comida de ontem

Consolação

Nesta minha loucura, você não pode entender
Vejo as luzes da cidade, favela
Sem nada entender
O seu olhar me conta mina???
Labirinto.
Lugar nenhum
Pra chegar
Te chamo de puta
Você me consola
Com o seu olhar de mulher menina
Vou vestir meu capacete

Bora Bora construção
Eu fui feito um estilete
Eu fui feito pra ferir seu coração
ou não



Espaço

Acordei no meio da noite
Uma imagem na tvtelinha
Pintura e gestalt
A pintura como um signo
Eu preferia um sino, ou um cisne
Uma ruptura que tem que ter um ritmo
Pós guerra, pós nos narizes
Jazz e improviso
Assim vejo a arte
Pollok
Vibração
Tudo é dionisíaco em sua falta de forma
Na experimentação espacial de mais de três dimensões
Vibração da cor
A pintura de papel em recortes de tesoura
O espaço detonado.Fim a Apolo.
Misturar tudo.Com play. E com Back.
O dialogo da tela e com a tela numa transposição para a ação.
Quadro sem cavalete.
Artistas sem palco.
Publico sem artistas.
Decoração e devoração do sentido.
Experimentação e espermatização espacial
O mundo tem que ser ampliado.
Agora.
Perfume de rosas


Sentindo o perfume de rosas,
A voz do subúrbio pagão
Som, sonido, desencantos, acordei,
Acorde, a vida segue não sei

Viagens, cadernos, cordilheiras
Prostitutas de todas as vidas e vilas
Pastel de amor, amigos astral
Vale mais que Deus, sou teu

Amizade, coisa sagrada eu sei
Giros, altos giros e discordância
A luz da amizade é aleluia
Nasceu nosso grande amor, eu sei
Eu sei.


São Paulo via Nova Iorque


As prostitutas do cruzeiro do sul
Os mendigos pedindo esmolas
no cruzamento das estrelas
O peão da obra de construção civil
- o radinho de pilha
O peão da fábrica
- o café da tarde / o futebol
A favela e a menina que quer ser miss
Tempo para pensar no presidente
Os metalúrgicos / o sistema
O bandido Escadinha / a cocaína
Os jovens Geração Saúde / a cocaína
Avenida São João / o churrasco grego
A menina de branco / tão linda tão suja
A galeria do rock / ambulantes
O lado selvagem da cidade
Estou cansado de você
Cego / Posso ver seus pensamentos
Mereceria uma canção melhor
Último sonho brasileiro



ILI & ADA


I. Saindo do inferno

Que o diabo nos carregue a todos
Descendo as escadaria do inferno
Risos de escárnio da rainha mãe

Gozei fora várias vezes, perdi o prazer
Usei camisinha, todas vezes estourou
Ojê tenho sessenta e quatro

Você entende o que quero dizer
Queriam me cobrar com dólares
Para ter dez minutos de prazer
E dez anos inteiros de culpa

Encontrei você quando desistia
E não deu certo, realmente desisti
Agora é fuga, e nada mais
Amanhã entro com o seguro desemprego

Lençóis, palco da última luta
Já estou assando no meio do caldeirão
Gritos horríveis, aidéticos sendo cremados

Joguei de centro avante, center alf
Calcei chuteira, errei todas bolas
Ojê tenho sessenta e quatro

Você não pode entender
Pagaram em dólares o careca
E o careca aqui esmolando
Dez anos interinos, intestinos

Enviei uma carta para o redrunter
Me chamaram, me amaram,
Me fuderam, nem santinho me deram
Vou por todos meus tanques na rua

Dúzias de latas de cerveja
O pulsante som da Madona
Como uma chuva sem guarda chuva

Toquei tantos sons pausterizados
Mas também toquei Pixinguinha
Cartola e Nelson Cavaquinho


Estava entre a cruz e a microfonia
Entre a lucidez e a loucura
Mil vodkas e trezentos mil chopp
Pistola dentro, pistola fora

Corro pra banca da cidade USP
Jornal da tarde, alienação
Santos perdeu, sena ganhou
A vida cresceu debaixo do meu bigode

II.Dez passos na direção da terra

A urina que chamamos de mijo
Batia fortemente na água da privada
Fazendo espuma, mil figuras

Quantas vezes mijei fora do pinico
Ou pelo menos fora da privada
Na roda do carro ou na garagem

Metade da garrafa, é metade cheia
Metade vazia, Gil me perdoe
Metade da foda é sempre foda
Quem acabou primeiro espera o outro
(ou esperma o outro)

E eu que achava que estava me sentindo melhor
Porque a vida se tornou uma mesmisse.
Toda manhã, toda noite, tudo igual
A sua cabeça acompanha sem negar

A droga injetada plenamente no cérebro
Você vê todo o povo e ama Jesus
Seu coração está cavado
E você comendo chocolate no puteiro

Amor é a solução, cartazes dizem
Você está numa Bad Trip
Não pode saber o que dizer
Brother, mais uma música para quem

Baby, Babi, Bambi, Babe, Babando
O mundo está desnudo totalmente
Se preparando para uma grande suruba

Você marca presença, Marco Polo
Bucetas estralando, cuspes pra molhar
Rainha Elisabete, Monica Seller e Julio Iglesias


Vida é uma estranha coisa
Vem, passa e o chão aceita
Você negocia, se torna grande
Mas você estará lá, aonde?

A coisas são caóticas como esse poema
Como a galinha kikando e procurando
Eu poderia dizer coisas, eu pertenço
Ao ramo dos galináceos, cruzo o Cabo Barros

III. Chegamos na terra
(largamos aquele inferno)

O pecado é militar, senhor
Deixe-me masturbar quando quero
Quem pode deter desejos

Existia uma força interior
Nós a chamamos de Titan
Alguém aqui perguntava e Deus existe?
Um urubu passou e desenhou sua imagem

O satélite deveria aterrizar as nueve
Uno de nosotros deberia morrir
Mas é so dark to see
Knok, knok on the heaven’s door

IV. Dez dias na terra

Estou entrando em depressão
Não existe a porta do céu, nem a sua porta
E eu batendo, batendo, tudo, alguém

Astronautas passam por mim sem me dar atenção
Todos os espermas do mundo jamais chegarão a ser vida
Sento e penso quantas vidas se perde (ou ganha)

A menstruação do mundo é guerra
Estamos na menopausa
Peça pro vigia outra ronda
Snif, snif, três cristal

Eekk, eekk, overdose
Asteróide, você terra, tão estúpida
Quero chupeta, e quero mamãe
Troque minha fralda e me faça gozar

Porra, rompi a placenta
E de cara me desesperei
Muito vírus pros meus anticorpos

Bolp. Me desintregrei
Era bosta, desinteria e difeteria
Não... não me atrevo a dizer

O chão sempre está mais perto
Do que o céu, do que o seu
Sorriso deprimido no horizonte
Medicina privada, amor cirúrgico

V. Cinco dias debaixo da terra

Campesino, campesino
Manos na terra, que saco
Porque não compra una computadora?

Minhocas, vi milhões de minhocas
Raiz de alface, almeirão e couve flor
Deu até pra regar o metrô

O que você sente dedurona manhã
Algum dizer para esta cama
Alguma coisa como
Esta imensa abertura que se chama existência
Este imenso buraco que nos acolhe na desixtência.
O bom de estar debaixo da terra
É que não faz sombra.



Amazonidas (vôo 201)


Vejo a vida, janela retangular do avião
Asas que se encontram no comercial
Vejo a vida através da fresta
Da festa selva Amazônica
O caminhão pipa transporta
O homem leva tonel de água mineral nos ombros
A água não para de cair deste céu rio
E forma rios no asfalto
Barulho da chuva, urra, raízes no asfalto
Aircraft equiped with seat floated
Momentos antes de alçar vôo
Físico, a mente fica a nível solar
Vagaroso, o monte de metal pássaro
Desfila diante do aeroporto vazio
Vruuuu, verde passando, faixas
Tum. Verde amazônico
Lá embaixo vive. Viva.
Conhecendo você por cima
Entendo você por dentro
Ponto de partida, decolagem
Alma partida, fome selvagem
Nós que voamos e não somos pássaros
Invadimos a sua fauna
Invejamos suas praias, jogamos cocô.
Hordas de bárbaros
Sua alma brilha somente em agosto
A letra c me lembra aquele edifício
E também aquela curva do rio
Milhões de sementes
Tem sanduíche de filé
Tem sim senhor
Tem arara, tucano e cordoniz
Tem de novo aquela curva do rio
Rio que brilha no seu verde
Espelho, contem comigo, esmeralda
O encontro dos magos
O balanço do navio
A insígnia do super homem no peito
Quantos leprosos nos feicham nos faróis (ou flexam)
Fecho os olhos vejo o mapa da floresta
Rasgada aqui e ali por estradas
Tom acre, marrom e amarelo





Passamos as últimas nuvens
O vento castiga,
Sou vaidoso demais pra dizer derruba
Depois é só solidão, só sossego
Só soda, caustica, queimando
Meu estomago gastrico
Cuidado. Sou iodado diz sal cisnei
A parte mais difícil
Será nos embrenharmos pelo seu útero
Teseu no útero, materno
Perdi o avião, enterrei a cabeça na terra
Como o avestruz
Coração feito de cuscus
Num voo de albatroz
Sorrizo facil e falso
A aeromoça diz para apertarmos
Cintos porque atravessamos uma
Turbulencia

Vejo a vida através da fresta da festa selva amazônica
Um homem leva um tonel de água sob os ombros
Enquanto a água da chuva não para de cair deste céu rio
Barulho da chuva, cheiro da chuva, raízes
Conhecer você foi o ponto de partida e a alma partida
Nós nos adentramos da sua fauna e flora
Que alguns chamam de alma e que brilha só durante alguns dias de dezembro
Tinha uma letra a perdida em algum canto do edifício
Encontro de magos, insígnia de super homem escondida sob a blusa
Legiões de leprosos nos fecham no farol fechado
Eu flechado, olho para o lado, águas cinzentas
Tem codorna, tem baião de dois, Zé Ramalho
Tem arara, tucano, codorniz, retrato do Fagner
Tem aquela curva do rio, que nos leva aos seus lábios
Correnteza que nos trai e nos leva por aí
A desafiar pra ver rodamoinhos de dor
Mares, atóis, olhos castanhos, espelho clareia o céu
Risca um raio do horizonte, seus olhos dois faróis
Sinal de tempestade, adeus
Depois é só solidão
Vou perder o avião
E enterrar a cabeça na terra feito avestruz
Vôo de albatroz
Sorriso fácil e falso
Neste caminho de asfalto que trilhamos agora
Tão igual a outros caminhos
Que dá vontade de dizer
A vida é a mesma.